“Estou aqui para abrir os caminhos”. Corria o ano de 2000 quando Ney Latorraca fez esta afirmação, em rede nacional, tendo como testemunhas Jô Soares, José Wilker e Miguel Falabella. Os três divulgavam no “Programa do Jô”, na Globo, o espetáculo “Capitanias hereditárias”. Debochado, franco e com aquele jeito de “não devo nada a ninguém”, Ney ofuscou na entrevista até o próprio Jô, o que não era nada fácil.
Sua morte, nesta quinta-feira (26/12), aos 80 anos, na Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro, de sepse pulmonar decorrente de câncer na próstata, fez com que seus personagens mais conhecidos voltassem à ordem do dia: o Barbosa do humorístico “TV Pirata” (1988-1992), o Conde Vlad da novela “Vamp” (1991-1992), as múltiplas personas do besteirol “O mistério de Irma Vap”(1986-1997). Afinal, como ele próprio dizia, Ney Latorraca era “quase uma unanimidade”.
O ator terá velório público na sexta-feira (27/12), a partir das 10h30, no Theatro Municipal, no Rio de Janeiro. Às 15h, ocorrerá a cremação, em cerimônia restrita. Ele deixa o marido Edi Botelho, escritor, autor e diretor de teatro, com quem se relacionou por quase 30 anos. Na década de 1980, foi casado por cinco anos com a atriz Inês Galvão.
Pelado na Sétimo Céu
Quando Ney falou em abrir caminhos, ele não se referiu a uma peça espetacular ou um filme avantgarde. Era de nudez mesmo. Jô se lembrou de que, em 1975 (quando o AI-5 ainda em vigor), o ator foi o primeiro homem a fazer um ensaio sensual (leia-se: sem roupa) para a revista Sétimo Céu. O título do tal ensaio era a coisa mais Ney Latorraca que se pode imaginar: “O que a Vera Fischer tem que eu não tenho?”.
Naquela altura, Ney era estreante na Globo. Estava em sua primeira novela na emissora carioca, “Escalada”. Fábio Sabag, então seu chefe, enviou memorando para comunicar que ele estava suspenso por uma semana. Tinha de continuar gravando, mas não receberia por aqueles dias.
“Fui na sala do Boni (o chefão da Globo) e ele me disse: 'Você chega na hora? Decora o texto?'. Ele rasgou o memorando. Me perguntou o que eu fazia (além da novela). 'Maquiavel' com a Dina Sfat, 'Bodas de sangue' com o Antunes (Filho). É outro nível, eu posso ficar pelado”, afirmou ele na conversa com Jô.
Ney pôde muito, porque fez muito. Mas nada veio fácil. Ele nasceu em Santos, em 25 de julho de 1944, muito próximo da Vila Belmiro (era santista fanático), filho do crooner Alfredo e da corista Nena. O pai trabalhava no Cassino da Urca. Em 1946, quando o presidente Dutra proibiu o jogo no Brasil, a família passou maus bocados. Alfredo foi trabalhar em rádio; Nena acabou virando dona de casa.
A veia artística não era só do berço. O padrinho de batismo de Ney foi Grande Otelo. A infância foi difícil. Por falta de comida, ele dormia cedo para esquecer a fome. Chegou a ter anemia por carência de alimentação.
Aos 14 anos, começou a fazer bicos para ajudar em casa. Começou a fazer teatro na escola, estreou nos palcos em 1964, com “Pluft, o fantasminha”, e pouco depois se mudou para São Paulo. Entrou no elenco de “Reportagem de um tempo mau”, de Plinio Marcos, mas a peça foi censurada e teve só uma encenação, em 21 de setembro de 1964, no Teatro de Arena.
Ao longo dos anos 1960, fez pequenas participações em novelas como “Beto Rockfeller” e “Super plá”. Em 1967, ingressou na Escola de Arte Dramática da USP, onde se formou em 1969 e teve Marilia Pêra como madrinha. Naquele ano, encenou “O balcão”, de Jean Genet. Nos anos 1970, participou, nos palcos, do musical “Hair” e de “Jesus Cristo Superstar”.
Latorraca Fez cinco novelas na TV Record até ser contratado pela Globo. Seu primeiro grande papel na emissora foi como o rebelde Mederiquis da novela “Estúpido cupido”. O personagem só se vestia de preto e circulava na lambreta batizada pelo ator de Brigitte. Também marcante na TV foi sua participação na novela “Um sonho a mais” (1985). Não era sucesso de público, mas fez história – Ney interpretou seis personagens, como o milionário Volpone e uma mulher, Anabela.
Mesmo que seu nome esteja diretamente ligado à produção de teatro e de TV no Brasil, o ator teve bons momentos no cinema. Em 1981, fez história o beijo gay entre seu personagem, Arandir, e o de Tarcísio Meira (Aprígio), em “O beijo no asfalto”, versão de Bruno Barreto para o clássico de Nelson Rodrigues.
Exibido no Festival de Cannes de 1978, “Anchieta, José do Brasil”, de Paulo César Saraceni, colocou o ator no papel-título.
Em Minas
O último longa de Ney foi rodado em 2014 em Leopoldina, cidade da Zona da Mata mineira. Em “Introdução à música do sangue” (2015), de Luiz Carlos Lacerda, o ator interpretou o protagonista Uriel. Durante as filmagens, recém-chegado aos 70 anos, Ney falou ao Estado de Minas sobre o período em que esteve entre a vida e a morte.
Em 2012, ficou 40 dias internado devido à peritonite, inflamação da membrana que reveste a cavidade e os órgãos abdominais. “Quando fiquei doente, vi que a vida é uma bobagem. Você dá mais valor ao cotidiano, fica mais simples”, disse.
Simples, sim, mas sem perder o humor. Ontem, nas homenagens ao ator, o GNT reprisou o episódio de Ney no programa “Que história é essa, Porchat?”. Quando perguntado sobre o que queria escrito em sua lápide, ele nem titubeou: “Vai ser capa?” (Com agências).