Filmado em preto e branco com atores libaneses e ambientado no final dos anos 1940, o filme retrata a floresta amazônica como um ambiente sombrio



 -  (crédito: matizar filmes/divulgação)

Filmado em preto e branco com atores libaneses e ambientado no final dos anos 1940, o filme retrata a floresta amazônica como um ambiente sombrio

crédito: matizar filmes/divulgação

 

Em Belém, no terceiro dia de filmagem, o cineasta pernambucano Marcelo Gomes teve que parar tudo. A pandemia havia sido confirmada e o período de isolamento instaurado. “Foi uma loucura, todo mundo teve que voltar para suas casas, perdemos o dinheiro que tínhamos captado”, conta.

 


Somente em 2022, dois anos após aquele início tumultuado, Gomes teve condições de filmar, comme il faut, seu oitavo longa-metragem. A despeito das perdas naquele período, “Retrato de um certo Oriente”, que estreia nesta quinta-feira (21/11) nos cinemas, teve ao menos um ganho: seu trio de protagonistas aprendeu o português durante os dois anos em que a produção foi interrompida, afastando a intenção inicial de dublá-los.

 


“Falaram tão bem que eu pedi a eles que falassem mais errado”, comenta Gomes, a respeito dos três libaneses que protagonizam a história: a atriz Wafa’a Celine Halawi e os atores Charbel Kamel e Zakaria Kaakour. Rodado na região de Belém e também na Itália, nas proximidades de Nápoles, “Retrato” é uma adaptação de “Relato de um certo Oriente” (1989), romance de estreia de Milton Hatoum.

 


Quando Gomes chegou para o escritor para falar do interesse em adaptar “Relato de um certo Oriente”, Hatoum duvidou. “Mas o livro é todo em fluxo de consciência, não tem diálogo, é um coral de vozes, tanto que você só entende quem está falando no fim do capítulo”, foi o que ouviu dele. Gomes retrucou: “Estão está ótimo, quero esse desafio para mim”.

 

Ponto de partida

O longa, que marca os 20 anos da produtora carioca Matizar Filmes, nunca pretendeu fidelidade à obra de origem – a começar pelo título, que muda o nome de relato para retrato. “Usamos o livro como ponto de partida, não como ponto de chegada”, comenta Gomes, que dividiu o roteiro com Gustavo Campos e Maria Camargo. Esta última já teve a mesma função em duas produções derivadas de histórias de Hatoum – a minissérie “Dois irmãos” (2017) e o longa “O rio do desejo” (2023).

 


“O livro fala de alteridade. E meus filmes, desde ‘Cinema, aspirinas e urubus’ (2005), passando por ‘Joaquim’ (2017; sobre Tiradentes), tratam do encontro de pessoas de culturas diferentes. O outro elemento é a memória. A personagem principal começa a narrar as memórias para curar traumas do passado e do presente. Então construí o encontro da cultura libanesa com a amazônica, transformei os fluxos de consciência em olhares silenciosos e as narrativas do passado em fotografia. O filme começa com uma fotografia e termina com outra”, explica Gomes.

 


O filme dialoga com a atualidade, já que o contexto é a chamada Primeira Guerra Árabe-Israelense (1948-1949). Católicos, os irmãos Emir (Zakaria Kaakour) e Emilie (Wafa’a Celine Halawi) fogem do Líbano em busca de uma vida melhor. No navio rumo ao Brasil, ela conhece e se apaixona pelo comerciante muçulmano Omar (Charbel Kamel), cuja família está radicada em Manaus.

 


Desde o primeiro momento, o possessivo Emir se opõe ao relacionamento. Usa das diferenças religiosas para separar o casal. Já na Amazônia, mas antes do destino final, os dois homens libaneses têm um embate, o que leva Emilie a pedir ajuda a uma comunidade indígena.

 

Línguas estrangeiras

A trama é falada em francês e em português, já que os personagens, com a vinda para o Brasil, começam a aprender a nossa língua. “Eu poderia ter colocado atores falando em inglês, ou brasileiros falando português com sotaque de novela, mas queria uma verdade. Então tinha que trazer atores libaneses não só pela língua, mas pelo sotaque, forma de caminhar e ainda para trazer uma observação fresca da Amazônia”, afirma Gomes.

 


O diretor não conhecia nenhum dos atores, que nunca tinham vindo ao Brasil e foram selecionados por meio de testes on-line. “Todos os três tinham que ter olhares fortes. Pedi que quando chegassem à Amazônia anotassem as primeiras impressões do lugar, o que sentiram, os cheiros, esse frescor do olhar que o estrangeiro tem.”

 


Também foram selecionados atores indígenas da etnia Tukano, do Alto Rio Negro. “Então foi lindo, porque o Milton dizia que a Manaus dos anos 1950 parecia uma babel de línguas e culturas. Quando comecei a ensaiar, eu já tinha construído aquela babel.”

 


Gomes filmou em preto e branco. “Meu cinema é de personagens. E a principal é a Emilie, que sai do Líbano, um lugar de vegetação simples, um pouco árida, e chega naquele mundo das águas, na Amazônia, em que tudo está para ser explorado. Imaginei Emilie chegando lá e olhando para a floresta e dizendo: ‘Eu tenho medo’. Se essa floresta fosse sombria, e não exótica, se cria uma densidade dramatúrgica profunda.”

 

Desta maneira, conta o cineasta, foram trocados os 50 tons de verde (da floresta) para 50 tons de cinza. “Além do mais, o preto e branco é a cor da fotografia da época”, acrescenta Gomes, que, com essa opção estética, prestou homenagem a filmes que usou como referência: “O encouraçado Potemkin” (1925), de Sergei Eisenstein, “Limite” (1931), de Mário Peixoto, e “Hiroshima, meu amor” (1959), de Alain Resnais.


“Todos esses filmes, que me emocionaram, estão ali. O Pierre de Kerchove, meu fotógrafo, descobriu umas lentes antigas, então a imagem leva você para outra época. E a gente tentou construir uma imagem no som que fosse hipnotizante, para que você seja convidado a fazer uma imersão naquele mundo, entrar naquela viagem”, diz Gomes. 

 

“RETRATO DE UM CERTO ORIENTE”

(Brasil/Itália/Líbano, 2024, 93min.). Direção: Marcelo Gomes, com Wafa’a Celine Halawi, Charbel Kamel e Zakaria Kaakour. O filme estreia nesta quinta-feira (21/11), no UNA Cine Belas Artes (Sala 3, 17h30 e 19h10) e no Centro Cultural Unimed-BH (sessão em 23/11, às 21h20).