Juraciara Vieira Cardoso
Professora da UFMG, graduada em Direito, mestre em Direito Constitucional e doutora em Filosofia do Direito
COLUNA VITALidade
Entre o bisturi e a liberdade
Enquanto se prega pela liberdade estética, impõe-se um dever de parecer eternamente jovem
Mais lidas
10/11/2025 02:00
- atualizado 17/11/2025 08:40
compartilhe
SIGA NOx
Muitas vezes já escrevi aqui na coluna sobre envelhecer conforme se deseja, sem que nenhuma pressão social seja condutora das nossas decisões a respeito de como desejamos expressar, em nossos corpos, a passagem do tempo. A ideia que tenho defendido, desde sempre, nunca foi a de que não devemos nos submeter aos tratamentos estéticos que, de maneira racional, desejamos nos submeter. Ao contrário, devemos fazer ou não tratamentos apenas se nós desejarmos, e não porque vivemos em uma sociedade na qual não esconder os traços do envelhecimento é visto como algo não valioso.
Há algumas semanas, após escrever uma coluna na qual analisava as reações a uma foto publicada pela apresentadora Xuxa, em que houve vários comentários sobre uma possível flacidez em seu braço, inúmeras pessoas me questionaram se eu não me submetia ou nunca havia me submetido a tratamento estético pois, conforme entendiam, eu parecia, de algum modo, defender que as pessoas não os fizessem. Nada pode ser mais inverídico do que isso, pois, em momento algum, defendi que as pessoas não façam tratamentos para retardar as marcas que o envelhecimento inexoravelmente nos traz, mas isso só deve acontecer se for fruto de um desejo genuíno da pessoa e não por pressão social.
Há um limite entre o cuidado que queremos ter conosco e a submissão àquilo que as pessoas acreditam que seja a melhor forma de envelhecer. Cuidar de nós mesmos é um exercício de liberdade, pois é parte do processo de construção da nossa identidade. No entanto, quando esse cuidado é capturado pelas expectativas que a sociedade tem em relação ao envelhecimento, ele se transforma em motivo de insatisfação constante conosco.
Simone de Beauvoir, no livro A Velhice, diz que envelhecer não é apenas um processo biológico, mas uma construção social. A sociedade, principalmente a ocidental, associa juventude a valor, de modo que o envelhecimento é sempre visto como declínio, nunca seus aspectos positivos são sobressaltados. É justamente por não valorarmos as preciosidades que o envelhecimento nos dá que o olhar coletivo nos convence de que o corpo envelhecido precisa ser corrigido. O problema, então, meus nobres leitores, não são os procedimentos estéticos, mas a lógica perversa que os sustenta.
O que sempre defendi foi o poder de escolha. A verdadeira liberdade só se manifesta quando temos a capacidade de exercê-la de modo autêntico, ou seja, segundo nossos anseios e propósitos. Quando uma pessoa decide fazer um tratamento estético porque deseja sentir-se bem consigo mesma, há nisso um gesto de cuidado legítimo, um exercício de autêntica liberdade. Contudo, quando alguém o faz para atender ao olhar alheio, o gesto perde sua potência e se converte em submissão disfarçada de autonomia.
O que advirto é que estejamos atentos: quando optamos por um tratamento estético, estamos de fato exercendo nosso poder de decisão ou apenas reproduzindo a ordem invisível daquilo que nos é permitido desejar? É preciso perceber que a sociedade contemporânea nos oferece uma infinidade de possibilidades mas, ao mesmo tempo, delimita rigidamente quais delas são socialmente aceitas. Assim, enquanto se prega pela liberdade estética, impõe-se um dever de sempre parecer mais jovem do que se é, o que, de fato, faz com que o corpo que envelhece precise se justificar continuamente.
Em suma, não há nada de errado em querer nos ver bem no espelho, errado é quando o espelho passa a refletir não o nosso desejo genuíno, mas as pressões para que sempre pareçamos mais jovens. Entre o bisturi e a aceitação social há um amplo espaço de liberdade, onde cada um pode escolher envelhecer do modo que melhor lhe parecer, sem que isso signifique excesso de vaidade ou desleixo, mas apenas uma opção pessoal.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
