Os inconfessáveis nossos de cada dia
Ao julgarmos, devemos olhar antes para aquilo que temos de mais inconfessável
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No livro, A Queda, de Albert Camus, o protagonista, um advogado brilhante, justo e admirado, como o autor o descreve, presencia o suicídio de uma mulher e, por não ter agido quando acreditava que deveria tê-lo feito, salvando a infeliz, carrega uma culpa sombria dentro de si. A escolha de um advogado não é por acaso, com isso o autor coloca no centro da história um “profissional do julgamento” para nos ajudar a questionar nossa própria noção de moralidade, principalmente quando confrontada com as inescapáveis contradições da condição humana.
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O texto nos conta que Jean-Baptiste Clamence, antes do fatídico encontro com a suicida, era um proeminente advogado em Paris, especializado em causas nobres, como a defesa de viúvas e órfãos, o que, segundo acreditava, o colocava moralmente em um patamar muito mais elevado que as demais pessoas. Ele se orgulhava de estar sempre do “lado certo” e fazia do Tribunal um palco para alardear suas grandiosas virtudes. Julgava aos demais como moralmente inferiores, pois se percebia como o mais justos e virtuosos dos homens.
Após sua omissão, principalmente porque acreditava que deveria ter salvado a mulher, Clamence começa a questionar suas próprias virtudes e percebe que sua pretensa generosidade e seus atos de bondade não eram fruto de um genuíno altruísmo, mas sim resultado de sua vaidade. Ele chega a afirmar que cada gesto magnânimo seu, se bem avaliado, era uma performance calculada para o público, tudo com o objetivo de reforçar a imagem de superioridade moral que ele tanto precisava para existir.
Mas quando aquele homem virtuoso ouve o barulho do corpo da mulher caindo e seus gritos e nada faz, ele compreende naquele instante sua contraditória condição. A falta de inciativa diante da situação, talvez até mesmo justificada pelo pensamento fugaz de que não daria mais tempo, expôs a dura verdade sobre sua coragem e sua moralidade, e no exato instante em que não salvou a suicida, morreu também dentro dele o super-homem que ele acreditava ser.
O que passou a assombrá-lo depois daquela noite chuvosa foram as vozes de sua própria consciência ridicularizando a duplicidade de uma vida inteira, pois, quando posto à prova sobre suas prórprias virtudes, agiu como aqueles que ele tanto abominava. A partir desse instante, a culpa se tornou sua companheira, mas não se tratava de uma culpa cristã, que esperava o perdão, mas de uma culpa existencial, aquela de quem reconhece a distância entre o que se diz e o que realmente se é.
Clamence é uma alegoria do ser humano, ao narrar sua degradação, ele desnuda a todos nós. O livro é um convite para olharmos para nós mesmos e percebermos que mesmo os mais éticos dentre nós, carregam dentro de si zonas escuras. Nesse sentido, o protagonista não é o vilão da história, ele é apenas o instrumento que o autor usa para nos mostrar nossas próprias contradições, já que o homem que discursava sobre virtudes termina confessando seus pecados, não para se redimir, mas para nos arrastar com ele e nos lançar aos olhos a hipocrisia diária que nos escapa.
O personagem de Camus não busca compaixão, ele só quer a nossa companhia. Ele é o um sujeito universal da condição humana, que confessa seus pecados para nos ajudar a também confessarmos que somos todos falíveis e contraditórios. E que, quando julgamos os erros dos outros – que, inclusive, são diferentes dos nossos -, devemos ter em mente não uma pretensa superioridade moral, muito antes pelo contrário, devemos olhar para aquilo que temos de mais inconfessável antes de jogarmos a primeira pedra, como recomendou Jesus aos fariseus.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
