Juraciara Vieira Cardoso
Juraciara Vieira Cardoso
Professora da UFMG, graduada em Direito, mestre em Direito Constitucional e doutora em Filosofia do Direito
COLUNA VITALidade

A arte de não se levar tão a sério

Era como se, por meio de suas risadas, ela subvertesse as expectativas e suavizasse o trágico

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Todo dia, lugar e hora é tempo para aprender. Na semana que passou, estava na aflitiva sala de espera de um médico bastante atrasado, quando tive a oportunidade de vivenciar uma experiência filosófica na prática. Na pequena sala havia várias pessoas, entre elas, uma senhora de 87 anos muito falante e capaz de prender a atenção de todos ao redor. O que mais me chamou a atenção é que ela tinha um bom humor contagiante: fazia piada sobre ela, os familiares e os amigos em todas as histórias que contava. Nada lhe escapava ao olhar anedótico, desde comprar fraldas para os netos até uma simples visita ao dentista, tudo virava um caso engraçado. Ela disse a todos que com a idade que tinha já havia perdido muitas coisas, mas o que não perdia era uma chance para dar uma boa risada.

Aquele encontro ressoou em mim de um modo que não pude definir claramente, mas sempre me chama a atenção pessoas que conseguem envelhecer mantendo a alegria e a altivez diante da vida. Isso me impulsionou a chegar em casa e reler o verbete sobre o “humor”, escrito por André Comte-Sponville, em seu livro “O Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”. No livro, o autor apresenta o humor como uma virtude, extensão natural da virtude da modéstia, ou seja, da nossa capacidade de reconhecer nossa pequenez sem amargura ou tristeza. 

O humor, em sua mais elevada forma, é visto por ele como a capacidade de rirmos de nós mesmos, e surge como fruto da percepção clara da nossa própria insignificância frente a temporalidade da vida. Segundo Sponville, rir de si mesmo é um exercício de lucidez e desprendimento.

Aquela senhora de sorriso fácil, do alto dos seus 87 anos, ria de si mesma com uma facilidade impressionante, quase incômoda. Pode parecer simples, mas para rir de si mesmo sem sofrer, o sujeito tem que já ter entendido que ele não é o centro do mundo, que pode errar e, de vez em quando, ser o “bobo” da vez. É preciso conseguir ver a si mesmo com um distanciamento tal que possibilite ao indivíduo se expor ao ridículo sem se desintegrar por isso, o que demanda um profundo desapego do ego e uma capacidade incomum de se expor. Não sei se era natural a ela aquele comportamento desde a juventude ou se o adquiriu com o tempo, o que sei é que era fascinante estar ali observando aquilo.

 

Fiquei uns quarenta minutos ouvindo casos, nem todos felizes, aliás, uns eram até bem tristes, mas o bom humor e a alegria daquela senhora transformavam aquelas histórias, aparentemente tristes, em algo leve, como se, por meio de suas risadas, ela subvertesse as expectativas e suavizasse o trágico. O mais interessante era que ela não era zombeteira ou negava o sofrimento existente por traz dos fatos, ela simplesmente não fazia dele o protagonista dos seus relatos. Ela tinha uma generosidade consigo mesma, com os outros e com os acontecimentos que era desconcertante para muitos de nós, que vive em constante estado de cobrança para se apresentar sempre na melhor versão.

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Dona Alma, foi como eu a chamei internamente - já que não soube seu nome - tinha um espírito evoluído: fazia piada sem escárnio, ao contrário, de forma despretensiosa, narrava a vida que viveu com alegria e graça. Quando afirmei no início que havia vivido uma experiência filosófica, foi porque, através daquela senhora, entendi genuinamente o que Comte-Sponville queria expressar quando concebeu a capacidade de rirmos de nós mesmos como a forma mais elevada da virtude chamada humor. 

Não nos levar tão a sério pode ser um excelente antídoto contra o endurecimento que as perdas sucessivas durante a vida podem gerar, e aquela senhora era a prova viva disso: ao rir de si mesma, Dona Alma não negava o tempo, mas o transcendia, não anulava a dor, mas a ressignificava com leveza. E foi assim que, não mais que de repente, uma entediante sala de espera se transformou em sala de aula... 

 

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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