
Nem delírio nem loucura, apenas mães de bebês reborn
O bebê reborn não é um boneco qualquer, mas algo que, na prática, ocupa o lugar simbólico de um bebê real
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Nas últimas semanas tem aparecido inúmeras reportagens sobre as mães de bebês reborn. Elas noticiam disputas judiciais envolvendo a guarda da boneca, tentativas de uso de serviços públicos e até mesmo projetos de lei buscando vedar o acesso de recursos públicos a bonecos ou objetos inanimados. Os bebês reborn são bonecos hiper-realistas que imitam recém-nascidos, com detalhes minuciosos como textura da pele, peso, veias e até mesmo cheirinho de bebê e podem custar de R$ 200 a R$ 10 mil, dependendo do nível de realismo e personalização.
Em todas as reportagens, havia em comum um tom de julgamento sobre o comportamento dessas mulheres, sem avaliar que, mais que uma excentricidade contemporânea, essa “maternidade” nos obriga a pensar sobre a organização social do afeto. Afinal, quando olhamos para as mulheres que embalam, alimentam, vestem e cuidam dos seus bebês de vinil, o que realmente estamos vendo? Um delírio coletivo, uma patologia moderna ou, quem sabe, um sofisticado mecanismo psíquico de enfrentamento das dores da vida?
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Edmund Husserl, considerado o pai da fenomenologia moderna, afirma que a consciência é sempre consciência de algo e, nesse sentido, aquilo que o objeto é materialmente pouco importa se comparado àquilo que ele representa no mundo vivido de quem o experiencia. Assim concebido, o bebê reborn não é um boneco qualquer, mas algo que, na prática, ocupa o lugar simbólico de um bebê real. O peso, o toque, o cheiro, tudo foi planejado para produzir não apenas um objeto, mas uma experiência – e, portanto, uma verdade psíquica e emocional.
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Assim, qualquer julgamento apressado e superficial sobre a situação deve ser descartado, pelo menos a princípio, pois muitas vezes há muita dor por traz do excessivo cuidado com o bebê reborn. Pode ser um luto mal elaborado, uma excessiva solidão, a ausência de vínculos afetivos genuínos ou até mesmo um desejo profundo de maternidade que, por contingências da vida, não pôde se realizar no plano biológico. E atire a primeira pedra aquele que em algum momento da vida não buscou preencher um vazio ou aplacar uma ausência por meio de construções simbólicas reconfortantes.
Mas, se por um lado o fenômeno revela de maneira comovente a potência da imaginação humana para criar formas de reparação afetiva, por outro lado, ele também nos obriga a lançar um olhar crítico sobre como nossas sociedades têm transformado afeto em mercadoria. Vivemos acreditando que o amor, a amizade, a companhia, o consolo e a presença podem ser embalados, precificados e vendidos. E os bebês reborn talvez sejam a expressão mais literal e desconcertante dessa lógica. Eles não são um simples objeto oferecido pelo mercado, mas sim a oferta de uma experiência emocional e vínculos simulados, que buscam confortar existencialmente seu comprador.
O problema não está no objeto em si, nem tampouco nas mulheres que encontram nele um espaço legítimo para elaboração de suas dores e afetos. O problema maior está no sistema que se aproveita da vulnerabilidade emocional para ofertar, a custos muitas vezes elevadíssimos, simulacros que prometem preencher buracos existenciais, mas que, na maior parte das vezes, apenas os revestem temporariamente. O que isso nos revela? Um mundo no qual os vínculos reais são cada vez mais frágeis, e onde os afetos, antes tecido de encontros e reciprocidade, se tornam, eles próprios, mercadorias.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.