
Somos todos náufragos diante da morte?
Ao mantermos o gosto da morte como lembrete constante da preciosidade da vida, vivemos de maneira mais significativa
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Vivemos frequentemente em uma negação silenciosa, quase imperceptível, porém poderosa. Ignoramos rotineiramente o único evento verdadeiramente inevitável: a morte. Essa recusa em aceitar nossa própria finitude se assemelha à experiência de alguém preso em uma ilha deserta, cercado de água por todos os lados, consciente de que, pouco a pouco, o mar consome a terra firme.
A pessoa ocupa-se freneticamente com tarefas cotidianas, ignorando o avanço inevitável das águas. Em essência, é assim que muitos de nós vivemos.
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A morte nem sempre foi tratada de modo tão distante. Há menos de um século, morrer era um acontecimento comunitário e familiar. Pessoas morriam em suas próprias casas, rodeadas por parentes, vizinhos e amigos que se despediam publicamente. Com a chegada da modernidade, e particularmente com o advento das tecnologias médicas avançadas, a morte migrou dos espaços domésticos para os hospitais. Esse movimento modificou nosso relacionamento com o fim da vida. Tornamos a morte um evento privado, frequentemente prolongado além dos limites razoáveis, alimentando ainda mais nossa incapacidade coletiva de aceitá-la como parte natural e inevitável da existência humana.
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Esse cenário encontra ressonância nas reflexões de Ernest Becker, para quem o medo da morte é nosso maior pavor existencial, pois, dotados de consciência e autoconsciência, sofremos profundamente com a certeza de nossa finitude, num conflito entre o desejo de vida e significado e a inevitável extinção. Para lidar com essa ameaça direta ao nosso senso de importância e continuidade existencial, inventamos continuamente estratégias simbólicas de imortalidade, como a busca por fama, poder, conquistas pessoais ou adesão fervorosa a ideologias políticas e religiosas que oferecem algum tipo de eternidade simbólica.
Porém, chega um momento em que essas ilusões começam a ser testadas pela realidade inexorável do envelhecimento. O envelhecimento nos confronta diretamente com nossa mortalidade, expondo a fragilidade das ilusões que criamos. Surgem as marcas físicas e cognitivas que evidenciam nosso declínio inevitável, algo que a sociedade contemporânea frequentemente insiste em negar ou disfarçar. Dessa forma, o envelhecimento passou a ser tratado como um problema médico, estético ou social, e não como uma etapa natural e inevitável da existência humana. Essa postura gera preconceito e marginalização das pessoas idosas, uma condição frequentemente internalizada pelos próprios idosos.
É aqui que a filosofia de Martin Heidegger pode nos oferecer uma saída. Heidegger propõe que enfrentemos nossa mortalidade não como um evento final isolado, mas como uma condição essencial da nossa existência. Para ele, somos essencialmente "seres-para-a-morte", significando que a morte não é apenas o fim da vida, mas uma realidade permanente que define nossa existência cotidiana. Encarar nossa finitude de frente, com coragem e lucidez, é a única forma de viver autenticamente. Heidegger defende que apenas quando projetamos regularmente a nossa própria extinção somos capazes de distinguir com clareza aquilo que realmente importa daquilo que não passa de distrações triviais e insignificantes.
Adotar essa visão existencial não significa viver em constante tristeza ou ansiedade. Ao contrário, aceitar nosso envelhecimento e nossa finitude permite viver com maior plenitude, autenticidade e menos medo. Cada momento, interação e decisão passa a ter um significado mais profundo. Ao mantermos o gosto da morte como lembrete constante da preciosidade da vida, vivemos de maneira verdadeiramente significativa, humana e compassiva.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.