Fachada do laboratório PCS Lab Saleme, no Rio de Janeiro -  (crédito: Pablo PORCIUNCULA / AFP)

Fachada do laboratório PCS Lab Saleme, no Rio de Janeiro

crédito: Pablo PORCIUNCULA / AFP


Todos ficamos chocados com a situação dos pacientes que contraíram HIV durante transplantes realizados no sistema público de saúde do estado do Rio de Janeiro. O fato foi noticiado durante toda a semana passada e causou indignação e revolta, não apenas nos pacientes transplantados, mas na sociedade em geral. Mais que um mero caso de erro médico, trata-se de uma situação de completo descaso pela vida humana. A ideia de fazer testagem dos materiais apenas uma vez por semana, para diminuição dos custos, pode ter gerado resultado falso negativo em dois pacientes, que contaminaram, ao todo, outras seis pessoas com o vírus.

 

O fato de pacientes transplantados terem sido contaminados com o vírus HIV complica ainda mais sua situação de saúde, que já é frágil. Após o transplante, o uso de medicamentos imunossupressores é fundamental para evitar a rejeição do órgão recebido, entretanto, tais tipos de medicamentos comprometem o sistema imunológico do paciente e o deixa vulnerável a infecções oportunistas.

 


Do mesmo modo, a infecção pelo HIV também compromete o sistema imunológico, e os medicamentos antirretrovirais são o único meio de prolongar a vida do paciente. Contudo, tais medicações têm fortes efeitos colaterais, tais como insônia, cansaço, depressão, ansiedade, diarreia, perda de apetite, entre outros que, somados aos próprios do transplante, pode tornar a vida do enfermo um fardo.

 

Para entendermos melhor a questão, pode nos ser útil recorrer à filosofia kantiana, que nos oferece uma interessante abordagem sobre a singularidade da vida humana. Immanuel Kant defende que o ser humano deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo, e nunca como um meio para se alcançar determinado objetivo. Essa visão se traduz em uma máxima ética de que cada ser humano tem um valor intrínseco, que não pode ser sacrificado ou relativizado por questões econômicas.


 

De acordo com Kant, nossa dignidade está intimamente relacionada à nossa capacidade racional e à nossa autonomia, que são a base da singularidade. Isso quer dizer que cada ser humano é único e irrepetível, devendo ser protegido e valorizado em sua individualidade. No contexto da saúde, isso significa que o paciente deve ser tratado com respeito e consideração, tendo suas necessidades de saúde atendidas. Contudo, quando o sistema público de saúde opta em reduzir a frequência da testagem com a finalidade de diminuir custos, ele coloca em risco a vida e a saúde de pessoas concretas, transformando suas vidas em meros meios para alcançar retorno financeiro.

 


A abordagem kantiana ao problema dos pacientes transplantados, contaminados pelo vírus HIV, evidencia o desrespeito à dignidade humana nos procedimentos adotados pelo sistema público de saúde carioca. Quando a economia é priorizada em detrimento ao bem-estar e à segurança dos indivíduos, violamos o princípio ético de que nenhum valor econômico pode estar acima do valor intangível da vida humana. Ao não tratar os pacientes como fins em si mesmos, o sistema de saúde como um todo, e não apenas o laboratório, falhou gravemente em sua responsabilidade ética.

 

 

Embora seja inegável que o sistema público de saúde deva buscar eficiência em seus gastos, é criticável o modo pelo qual muitas vezes tal sistema opera sob pressão para redução de custos. Essa tragédia tem que servir para nos lembrar que o foco deve ser sempre o ser humano singularmente considerado, pois quando o foco é perdido, situações como estas acontecem, com consequências devastadoras para indivíduos cujas vidas foram irremediavelmente afetadas e cuja dor, dinheiro nenhum no mundo pode reparar.