
Clássico ou autoral? Eis uma falsa questão
O que separa um bom drinque de um experimento confuso não é a data de nascimento da receita, mas sua estrutura
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É fácil se perder entre nomes criativos e apresentações exuberantes. A coquetelaria moderna vive uma avalanche de drinques “diferentões”, com ingredientes curiosos e métodos dignos de laboratório. Em meio a espumas, fumaças e fat washings, é comum esquecer que um bom coquetel não precisa de espetáculo — só precisa fazer sentido.
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O embate entre clássicos e autorais, tão presente em cartas contemporâneas, muitas vezes parte de uma oposição equivocada. Clássico não é sinônimo de antigo, nem autoral é sinônimo de novo. O que separa um bom drinque de um experimento confuso não é a data de nascimento da receita, mas sua estrutura.
Todo coquetel carrega, mesmo que camuflado, uma raiz. Segundo o Cocktail Codex — obra que consolidou o entendimento técnico da coquetelaria moderna —, todos os drinks derivam de apenas seis famílias fundamentais: Old Fashioned, Martini, Daiquiri, Sidecar, Whiskey Highball e Flip. As variações são infinitas, mas as bases são poucas — e sólidas. Entender isso é fundamental para criar. Sem essa estrutura, inventar se torna adivinhação, não invenção.
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Há algo de honesto e necessário na previsibilidade dos clássicos. Um Negroni precisa ser amargo, encorpado e limpo. Um Martini — esse, inclusive, é o primeiro a trair quem não respeita sua precisão — exige equilíbrio absoluto. Sua força está justamente na contenção.
Qualquer deslize no gin, no vermute, na diluição ou na temperatura, e o resultado é um coquetel mal-humorado, quase arrogante. Talvez por isso seja tão mal executado por aí.
A sofisticação não está em complicar, mas em dominar. Os grandes bartenders do mundo sabem disso. O desafio não está em transformar limão em gel, mas em extrair dele o frescor exato que a receita pede. Os autorais que sobrevivem ao tempo são justamente aqueles que bebem dos clássicos com respeito e ousadia. Criam dentro do paradigma, não contra ele.
O que se vê com frequência em alguns bares — e aqui vale a crítica com afeto — é o uso da criatividade como escudo. Em vez de estudar técnica, proporção e equilíbrio, parte-se direto para o enfeite. O resultado? Um coquetel que fotografa bem, mas se desmonta no primeiro gole.
No entanto, quando a criação autoral é feita com fundamento, o resultado pode ser arrebatador. Porque não se trata apenas de misturar sabores, mas de oferecer uma ideia bem resolvida num copo. E poucas coisas são tão elegantes quanto isso.
A verdade é que não existe “versus”. Clássico e autoral não duelam. Eles dançam. O bom profissional — e também o bom apreciador — é aquele que reconhece essa harmonia. Que entende que cada drink novo precisa, primeiro, agradecer ao anterior. E que, muitas vezes, basta voltar a um Daiquiri bem feito para lembrar que a genialidade não mora na invenção, mas na clareza.
No fim, o bom coquetel não quer provar que é diferente. Ele só quer ser inesquecível.
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Vertigem
Um drink criado dentro da escola clássica, mas com assinatura pessoal, criado para o meu novo restaurante. Cachaça lavada em gordura, bitters aromáticos e o frescor pungente da alfavaquinha. Estruturado, aromático e surpreendente.
Ingredientes
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50 ml de cachaça fat wash com banha
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5 ml de Peychaud’s
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7,5 ml de xarope simples
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1 flor de alfavaquinha (para finalizar)
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Gelo
Modo de preparo
Em um mixing glass, adicione a cachaça, o Peychaud’s, o xarope e o gelo.
Mexa por cerca de 13 rotações, respeitando a diluição e o resfriamento.
Coe diretamente na taça previamente gelada.
Finalize com uma flor de alfavaquinha sobre a superfície.
O que é fat wash?
O fat wash é uma técnica que infunde gordura (como manteiga, óleo ou banha) em um destilado. No caso do Vertigem, usamos banha para agregar textura e sabor à cachaça. Para isso, basta aquecer levemente a gordura e misturar com a cachaça. Deixe repousar por algumas horas, depois leve à geladeira para que a gordura solidifique e possa ser retirada. O resultado é um destilado mais macio, untuoso e com profundidade aromática singular.
Uma homenagem à precisão dos clássicos com a ousadia dos autorais — porque um jamais existiria sem o outro.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.