Tiago Baumfeld
Tiago Baumfeld
Ortopedista Especialista em Pé e Tornozelo. Doutor em Ortopedia pela UFMG.
PÉ & TORNOZELO

A demonização do impacto

Impacto não é antagonista do corpo humano. Ele é parte constitutiva de como nos mantemos vivos, fortes e funcionais

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A medicina do esporte e a ortopedia vivem ciclos curiosos. Em certos momentos, elegemos vilões que passam a atuar quase como entidades demonizadas. Já teve a época da “coluna desalinhada”, da “pisada errada”, da “escoliose imaginária”, da “cartilagem que desgasta como pneu”, e agora estamos em pleno auge do “impacto é danoso”. No consultório, nas redes sociais e até em conversas casuais entre praticantes de atividade física, o impacto se tornou uma espécie de veneno: algo a ser evitado, neutralizado e, se possível, extirpado da vida cotidiana. Mas, ironicamente, é justamente esse estímulo — tão temido — que mantém nossos ossos, músculos e articulações saudáveis.

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A aversão ao impacto virou moda. Treinos de baixo impacto são vendidos como superiores; programas de emagrecimento prometem resultados “sem impacto”; profissionais de saúde recomendam evitar qualquer tipo de carga em pessoas com artrose, osteopenia ou dor crônica; e pacientes chegam ao consultório quase como se estivessem pedindo desculpas por terem corrido, saltado ou simplesmente descido uma escada mais rápido. O impacto virou um bode expiatório conveniente.


Mas a fisiologia humana não negocia com narrativas. E quando colocamos impacto no banco dos réus, esquecemos que somos biologicamente programados para lidar com ele.


Impacto é um estímulo biológico, não um agressor


O que chamamos de impacto nada mais é do que a transmissão de forças pelo corpo diante de movimentos cotidianos: pisar, correr, saltar, descer um degrau, travar o corpo numa mudança rápida de direção. É um estímulo que acompanha o ser humano desde que aprendemos a ficar em pé. Em outras palavras, impacto é parte do nosso design.


O que a ciência mostra, de forma consistente, é que o impacto moderado e progressivo fortalece tecidos, não os destrói. Os ossos se tornam mais densos; os músculos, mais eficientes; os tendões, mais organizados; e até a cartilagem, tão injustiçada, responde melhor quando submetida a cargas compatíveis com sua fisiologia. A ideia de que impacto desgasta a cartilagem da mesma forma que um pneu se desgasta na estrada é uma confusão conceitual grave. Pneus não se adaptam. Tecidos vivos, sim.


O problema nunca foi o impacto em si, o problema sempre foi o despreparo para lidar com ele.


A indústria do medo e o marketing do “zero impacto”


O ambiente atual favorece narrativas extremas. Nos consultórios, a recomendação de “evite impacto” virou uma saída fácil. Nas redes sociais, por sua vez, o marketing criou um espetáculo do impacto como se ele fosse inimigo universal. Programas de treino amigáveis são vendidos como se fossem mais seguros por evitar o estímulo que, ironicamente, mais protege a estrutura musculoesquelética. Academias surfaram na onda do baixo impacto com slogans que prometem saúde sem esforço mecânico. E muitos influencers tratam qualquer exercício de salto ou corrida com um tom alarmista, como se fosse um convite ao desastre.


Essa indústria do medo é conveniente porque captura pessoas já inseguras, fragilizadas, receosas de sentir dor. Promete conforto, mas entrega fragilidade. Promete proteção, mas entrega vulnerabilidade.


Por que impacto faz bem, e por que evitá-lo faz mal


A biomecânica humana é simplesmente fascinante quando observada sem preconceitos. O impacto provoca três efeitos centrais e fundamentais: aumento da densidade mineral óssea, melhora do controle motor e da estabilidade, estímulo benéfico à cartilagem.


Quando retiramos o impacto da rotina, retiramos exatamente o que mantém o sistema musculoesquelético funcional. Isso explica por que tantos pacientes sedentários e, paradoxalmente, tantos pacientes que fazem apenas exercícios sem carga, têm dores crônicas por incapacidade mecânica. Não é excesso. É escassez.


Mas, então, impacto nunca machuca? Seria ingênuo afirmar isso. Impacto pode machucar quando:


» Surge de forma repentina em quem não está acostumado


» Acontece em volumes maiores do que o corpo tolera

» Ocorre em pessoas com musculatura insuficiente


» É realizado sem progressão


» É imposto sobre articulações já irritadas e sem trabalho de base


Em outras palavras: impacto mal planejado é nocivo. Mas isso não é característica do impacto, é característica da falta de planejamento. A diferença entre estímulo e lesão está no contexto, não no movimento.


O papel dos profissionais de saúde


Muitos profissionais recomendam evitar impacto não por ciência, mas por insegurança. É mais fácil negar do que orientar, mais fácil proibir do que treinar, mais fácil culpar o impacto do que investigar a cadeia cinética, déficit de força ou padrão de movimento.


Quando um paciente com artrose leve é proibido de correr, estamos dizendo, em outras palavras: “eu não sei orientar sua progressão”. Quando uma pessoa com dor no joelho é aconselhada a nunca mais saltar, estamos reforçando o medo e a incapacidade, não promovendo saúde. Quando um idoso com osteopenia é instruído a fazer apenas exercícios sem carga, estamos literalmente acelerando o processo que queremos prevenir. É hora de assumir: parte do problema está no próprio setor da saúde.


Impacto não é antagonista do corpo humano. Ele é parte constitutiva de como nos mantemos vivos, fortes e funcionais. O processo ideal não é evitar impacto, é graduar impacto. E isso passa por fortalecer a musculatura; treinar a mobilidade; corrigir padrões motores; aumentar o volume progressivamente; respeitar fases de dor; e tratar causas, não sintomas.


Quando o impacto é reintroduzido com inteligência, os resultados são consistentes: melhora da dor, melhora da funcionalidade, melhora da autoconfiança, melhora da saúde geral. Impacto bem feito não destrói, constrói.


Quer mais dicas sobre esse assunto? Acesse: www.tiagobaumfeld.com.br ou siga @tiagobaumfeld

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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