Medicina baseada em evidência… ou baseada em influência?
Não é raro ver profissionais citando artigos que nunca leram além do resumo. Meta-análises mal compreendidas viram dogmas
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A medicina sempre se orgulhou de ser uma ciência guiada por evidências. Desde que esse termo se popularizou nos anos 1990, ele virou quase um selo de qualidade — a chancela de quem pratica a boa medicina. Mas, nos últimos anos, parece que esse conceito foi parar em outro universo. Hoje, a expressão “baseada em evidência” aparece em posts, legendas e até slogans de cursos online. É quase uma marca registrada, usada para dar peso científico a opiniões, modismos e produtos que, na prática, têm mais a ver com marketing do que com ciência.
Vivemos a era em que o feed substituiu o jaleco. O conhecimento que antes era filtrado por revisores e revistas científicas agora se espalha em vídeos curtos, frases de impacto e “prints” de artigos coloridos. O problema é que, no meio dessa enxurrada de informações, perdeu-se o mais importante: a capacidade de pensar criticamente. O que antes era leitura, reflexão e debate, virou consumo rápido de conteúdo que conforta o que já queremos acreditar.
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Hoje, todo mundo tem um “estudo que prova”. Basta cinco minutos no PubMed para encontrar um artigo que confirme praticamente qualquer ideia — desde as mais plausíveis até as mais absurdas. Quer defender o alongamento antes do treino? Tem estudo. Quer dizer que ele faz mal? Tem também. Quer justificar o uso de um suplemento, uma palmilha, um laser, uma infiltração, um calçado com placa de carbono? É só procurar. O desafio não é encontrar uma evidência — é entender o peso dela.
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Mas isso dá trabalho. E o algoritmo não gosta de nuances. Ele recompensa certezas, frases curtas e verdades absolutas. Assim, a ciência — que é, por natureza, cheia de dúvidas — foi sequestrada pela lógica das redes, que só valoriza quem fala com convicção, mesmo quando não tem razão. É o triunfo da retórica sobre o método.
O resultado é que a “medicina baseada em evidência” virou, em muitos casos, medicina baseada em influência. Quanto mais seguidores, mais “autoridade”. Quanto mais engajamento, mais credibilidade — mesmo sem qualquer revisão crítica por trás. A estética venceu a epistemologia. E o público, perdido entre tantas vozes, acaba acreditando em quem fala mais alto, não em quem fala com mais embasamento.
Claro, comunicar ciência é fundamental. Tornar o conhecimento acessível, traduzir termos técnicos, aproximar o público leigo — tudo isso é positivo e necessário. Mas entre divulgar ciência e simplificá-la até distorcê-la, existe um abismo. Muitos discursos “científicos” nas redes soam mais como estratégias de venda do que como educação. Basta observar quantas postagens terminam com um cupom de desconto, um link para compra, ou uma promessa de resultado imediato.
Não é raro ver profissionais citando artigos que nunca leram além do resumo. Meta-análises mal compreendidas viram dogmas. Estudos com amostras mínimas são tratados como “provas definitivas”. O “estudo diz” virou o novo “me contaram”. E, assim, a ciência vai sendo usada como escudo para justificar opiniões pessoais, preconceitos de prática e modismos travestidos de modernidade.
Isso tem consequências reais. O paciente chega confuso, bombardeado por informações conflitantes. Um post diz que o corticoide “destrói a articulação”; outro garante que ele “cura inflamação”. Um vídeo afirma que corrida “acaba com o joelho”; outro jura que “correr é o melhor remédio”. No meio desse ruído, o paciente não sabe mais em quem acreditar — e muitas vezes acaba acreditando em quem promete o caminho mais fácil.
A culpa não é só das redes. A formação médica (e multiprofissional) também precisa evoluir. Ainda ensinamos o raciocínio clínico como se ele terminasse na leitura de um artigo, quando, na verdade, é aí que ele começa. Medicina baseada em evidência não é sinônimo de seguir o que está escrito em um estudo. É saber avaliar o contexto, entender os vieses, julgar a aplicabilidade para aquele paciente específico. Ciência sem julgamento crítico vira dogma — e dogma, na medicina, é perigoso.
A boa prática não se constrói com PDFs, mas com pensamento. E pensamento exige tempo, dúvida, reflexão — justamente o que falta em um ambiente movido a cliques e curtidas. O bom profissional é aquele que, mesmo diante da avalanche de informação, mantém a serenidade de quem sabe dizer “não sei”, ou “ainda não há evidência suficiente”.
A medicina sempre evoluiu pela dúvida. E a dúvida é o que nos protege da arrogância intelectual. O perigo dessa nova era da influência é que estamos trocando o espírito crítico pelo conforto da certeza. E o paciente — que deveria ser o centro de tudo — corre o risco de se tornar apenas audiência.
Talvez o futuro da medicina dependa menos de acumular artigos e mais de recuperar o bom senso. Afinal, evidência não é bandeira pra ser erguida, é lente pra enxergar melhor.
E a melhor lente continua sendo a do olhar crítico — aquele que não se impressiona com curtidas, mas com coerência.
Porque, no fim das contas, a medicina baseada em evidência só existe quando é baseada em pensamento.
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As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
