
Perversão da produção científica na era dos concursos - parte 2
O verdadeiro problema não está apenas na existência dessas empresas — está no sistema que permite que elas prosperem
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Continuo hoje a ideia desenvolvida na coluna anterior sobre empresas que prometem verdadeiros milagres quando o tema é a produção de artigos científicos prontos em até 40 minutos.
A falência da avaliação nos concursos de residência
O verdadeiro problema não está apenas na existência dessas empresas — está no sistema que permite que elas prosperem. Os processos seletivos para Residência Médica se baseiam em critérios objetivos, muitas vezes mal pensados, como a simples soma de pontos por produção científica, sem qualquer verificação real da autoria, do mérito do trabalho, da relevância dos periódicos ou da coerência entre o tema do artigo e a área de interesse do candidato.
Essa lógica transforma o currículo em uma moeda de troca. O que deveria ser um indicador da maturidade acadêmica e do interesse pelo saber vira um item de barganha, onde vale mais ter 3 artigos fantasmas publicados em revistas predatórias do que um bom conhecimento clínico demonstrado na prova objetiva.
Os riscos para a ciência e para a medicina
Esse modelo, se não for coibido, trará consequências sérias para o futuro da medicina brasileira. Ao normalizar a farsa, os concursos acabam premiando os que melhor jogam o jogo, não os mais preparados. As escolas médicas, por sua vez, perdem o estímulo para ensinar o método científico, pois sabem que os alunos buscarão “atalhos” pagos. E os próprios residentes, muitos deles aprovados graças a um currículo inflado artificialmente, entram na pós-graduação sem saber distinguir uma revisão sistemática de uma carta ao editor.
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Além disso, esse ciclo alimenta um ecossistema de revistas científicas de baixa credibilidade, que aceitam artigos mediante taxa de publicação, sem revisão adequada, sem rigor, sem ética. Um terreno fértil para o pseudoconhecimento, a desinformação e, em última instância, o desprestígio da ciência.
O papel das instituições médicas
Conselhos regionais e federais de medicina, sociedades de especialidade, comissões de residência médica e universidades precisam reagir. É inaceitável que a principal etapa de entrada na especialização médica seja vulnerável a esse tipo de trapaça. É preciso reformular os critérios de pontuação, implementar mecanismos de verificação de autoria (como entrevistas, apresentações públicas dos trabalhos ou cartas de recomendação com atestados de participação real), e, acima de tudo, punir quem comete fraude.
Da mesma forma, é urgente que os editais passem a valorizar mais a qualidade do que a quantidade da produção acadêmica. Um bom artigo, feito com orientação adequada, mesmo que não publicado em revista internacional, vale mais do que uma dezena de textos irrelevantes com autoria comprada.
Uma questão de ética profissional
Ser médico não é apenas saber interpretar exames ou realizar procedimentos. É, sobretudo, assumir um compromisso com a verdade, com a ciência e com o paciente. A ética profissional começa na faculdade — e é profundamente abalada quando o sistema ensina o jovem médico a simular competências que não tem.
Aqueles que hoje compram autoria científica, amanhã talvez forjem laudos, assinem prontuários sem ver o paciente ou se tornem "especialistas" em áreas que mal conhecem. A linha entre a fraude acadêmica e a fraude clínica é tênue, e o risco de um sistema permissivo é alto demais.
Não é sobre produtividade, é sobre valores
A crítica à empresa citada acima não é apenas uma denúncia a uma empresa — é um alerta sobre o que estamos permitindo que se torne norma. O problema não é um serviço em si, mas um sistema que dá margem para que ele exista, prospere e, pior, seja defendido por muitos como uma “ajuda necessária”.
Se aceitarmos que ciência pode ser feita em 40 minutos, que autoria pode ser comprada com Pix e que ética é um acessório curricular, então estaremos formando não médicos, mas tecnocratas do improviso. E isso, mais cedo ou mais tarde, será cobrado no consultório, no centro cirúrgico, na saúde pública — e, principalmente, na confiança da população.
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As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.