Tiago Baumfeld
Tiago Baumfeld
Ortopedista Especialista em Pé e Tornozelo. Doutor em Ortopedia pela UFMG.
PÉ & TORNOZELO

A hierarquia rígida e como isso prejudica a área médica

Se a medicina é dinâmica, a postura de seus profissionais também precisa ser

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 A medicina, como muitas outras áreas do conhecimento humano, foi moldada ao longo dos séculos por estruturas hierárquicas bastante bem definidas. Desde os tempos antigos, o saber médico era transmitido de mestres e aprendizes em um modelo quase artesanal, no qual o respeito ao mais experiente se confundia com submissão. Embora essa estrutura tenha cumprido um papel importante em períodos nos quais o acesso à informação era limitado, ela se transformou, em muitos contextos, em um entrave à evolução da prática médica e, mais grave ainda, à segurança do paciente.

A hierarquia é uma organização natural em muitos ambientes complexos. Ela permite a divisão de funções, facilita a tomada de decisão e evita o caos em momentos de urgência. Em teoria, cada nível hierárquico traz consigo mais experiência, mais responsabilidade e, por consequência, mais poder de decisão. No entanto, quando essa estrutura se torna rígida demais, inflexível à escuta e impermeável à crítica, ela deixa de ser uma ferramenta de organização e passa a ser uma fonte de erro, de medo e de sofrimento.

Na prática médica cotidiana, essa rigidez hierárquica se manifesta de várias formas. O residente que não se sente à vontade para questionar a conduta do preceptor. A enfermeira identifica uma intercorrência, mas hesita em avisar o médico por medo de ser repreendida. O estudante que presencia um erro e não ousa apontá-lo. O fisioterapeuta, o nutricionista ou o farmacêutico que têm sugestões importantes, mas raramente são ouvidos em uma reunião clínica. Essas situações, infelizmente, não são exceções: são parte do tecido rotineiro de muitos hospitais e centros de saúde.

O silêncio como produto da hierarquia

Um dos efeitos mais perigosos da hierarquia rígida é o silenciamento das vozes que estão na base da pirâmide. Quando um ambiente profissional é marcado por medo e punição, as pessoas preferem se calar a correr o risco de se indispor com alguém hierarquicamente superior. Isso se torna ainda mais crítico em ambientes nos quais o tempo é fator determinante, como nas emergências ou centros cirúrgicos.

Estudos internacionais mostram que uma parte significativa dos eventos adversos em hospitais decorre de falhas na comunicação entre membros da equipe de saúde. E essas falhas, muitas vezes, não são técnicas: são relacionais. Um comentário que não é feito. Uma dúvida que não é esclarecida. Um alerta que não é levado a sério.

Se pensarmos em um ambiente cirúrgico, por exemplo, é comum que o cirurgião esteja no topo da hierarquia. Ele é o líder da equipe, aquele que toma as decisões finais. Mas ele também está sujeito ao erro — como qualquer outro profissional. Em um modelo rígido, um técnico de enfermagem pode hesitar em avisá-lo de uma contaminação do campo operatório. Uma anestesista pode evitar discutir uma conduta por receio de ser mal interpretada. E, nesse momento, o erro que poderia ser evitado se concretiza.

A cultura do "não questionar"

A cultura médica tradicional valoriza o saber do médico sênior como algo quase incontestável. O conhecimento empírico acumulado, a vivência de décadas, a habilidade técnica — tudo isso é, sem dúvida, valioso. Mas não pode ser confundido com infalibilidade.

A prática baseada em evidências nos mostra que o conhecimento científico está em constante evolução. Procedimentos antes considerados padrão-ouro hoje são vistos como ultrapassados. Condutas terapêuticas antes tidas como inquestionáveis agora são revisadas à luz de novos dados. Se a medicina é dinâmica, a postura dos seus profissionais também precisa ser.

No entanto, em ambientes altamente hierarquizados, questionar uma decisão pode ser interpretado como desrespeito. Isso desestimula a troca de ideias, reduz a diversidade de perspectivas e limita o crescimento de todos os envolvidos — inclusive do próprio líder.

O mais preocupante é que essa cultura é muitas vezes introjetada desde os primeiros anos da formação. Alunos são treinados para obedecer, não para dialogar. São cobrados por performance, mas raramente encorajados a refletir criticamente sobre os sistemas nos quais estão inseridos. E quando chegam à vida profissional, carregam consigo essa lógica de que questionar pode ser perigoso.

Experiências de mudança: o que funciona?

Felizmente, já existem modelos alternativos sendo implementados ao redor do mundo — e também no Brasil. Hospitais que adotam culturas organizacionais mais horizontais, baseadas em confiança mútua, escuta ativa e responsabilidade compartilhada, têm colhido frutos importantes. A metodologia de “segurança do paciente”, por exemplo, incentiva a criação de canais formais para que qualquer membro da equipe possa relatar erros ou potenciais riscos sem medo de punição.

Outra estratégia eficaz é o treinamento em comunicação assertiva para todas as equipes, inclusive os líderes. Aprender a dar e receber feedback, criar momentos de escuta ativa e reconhecer os limites da própria atuação são habilidades que não se ensinam nos livros, mas que fazem toda a diferença na prática clínica.

A valorização do trabalho multiprofissional também é um caminho sem volta. Quando diferentes saberes são integrados e respeitados, o cuidado ao paciente se torna mais completo. E isso só acontece quando há abertura genuína para ouvir o outro — independentemente do cargo ou da formação.

O papel da liderança médica

É claro que nem toda hierarquia é ruim. Ela pode ser necessária em contextos de alta complexidade, especialmente para garantir a agilidade e a clareza na tomada de decisões. O problema não está na existência da hierarquia, mas em sua rigidez e na forma como ela é exercida.

Liderar, na medicina contemporânea, não é apenas tomar decisões técnicas. É também saber criar um ambiente seguro psicologicamente, onde cada membro da equipe se sinta valorizado e ouvido. É reconhecer que autoridade não se impõe apenas com títulos, mas se conquista com respeito, escuta e humildade.

Médicos líderes precisam ser agentes de mudança dessa cultura. Precisam abrir espaço para a dúvida, para o contraditório, para o aprendizado contínuo. Precisam dar o exemplo de que errar faz parte do processo, e que admitir um erro é um ato de coragem — não de fraqueza.

Desconstruir uma estrutura hierárquica rígida não é simples. Exige tempo, esforço e, sobretudo, vontade política dentro das instituições. Mas é um movimento necessário se quisermos uma medicina mais segura, mais humana e mais sustentável para todos os envolvidos.

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As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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