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SÉRGIO ABRANCHES
Sérgio Abranches
SÉRGIO ABRANCHES

"Ainda estou aqui" mostra os horrores da ditadura como nenhum livro ensinou

Qual a magia do filme que ensina aos que não se lembram e aos que não têm o que lembrar, o que é um regime de medo, tortura e morte?

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“Poxa, não deu para eu ver o filme com a família” disse Daniel, meu neto de 15 anos. Então fomos todos rever “Ainda estou aqui” para acompanhá-lo. Ele achou o filme próprio para hoje. Ao fim, ele citava frases que poderiam ser ditas atualmente e admitiu que quer rever para pensar nelas. Ele está certo, “Ainda estou aqui” ensina os horrores da ditadura ao Brasil de hoje como nenhum outro filme ou livro.

 



Um mártir, uma heroína-mãe, uma família feliz brutalizada pela ditadura, na memória bem contada por Marcelo Rubens Paiva, adaptada para a tela em um filme limpo, fiel e bem dirigido por Walter Salles. É a história de Eunice Paiva e do sequestro e da morte de Rubens Paiva. Fernanda Torres é Eunice. Uma interpretação contida e, por isso, mais eloquente, sobre a dor profunda de uma mulher e mãe. Nas duas vezes que assisti havia mistura de gerações, quem viveu e quem mal ouviu falar da ditadura, e houve lágrimas e palmas.

 



O filme conversa com os jovens que nem sequer eram nascidos naquela época tormentosa. Eu tinha a idade de Daniel, quando vi os tanques do golpe descerem a W-3 em Brasília, no dia 1º de abril, e a idade da irmã dele, Mariana, 18 para 19, quando foi editado o AI-5. Eles ouviram da ditadura em casa com os pais e avós, mas o filme lhes mostrou mais.



Qual a magia do filme que ensina aos que não se lembram e aos que não têm o que lembrar, o que é um regime de medo, tortura e morte? Marcelo foi feliz em escrever sobre Eunice e olhar a ditadura da perspectiva dela no ambiente familiar. O filme torna essa narrativa ainda mais intimista. Mostra um ambiente alegre e vivo do tempo de normalidade invadido por agentes da ditadura e a vida familiar ficar tensa, infeliz e expectante. O sorriso, antes alegre, passa a ser afirmação política de resistência de uma família ferida, com medo da perda intuída e da repressão.

 

 


Walter entendeu a força desse olhar a ditadura a partir do centro da família amputada e da contida atuação de Fernanda Torres. A mudança de ambiente produzida pela ditadura está na saída de cena da simpatia, alegria e espontaneidade de Rubens Paiva, na esplêndida atuação de Selton Mello. Ela dá lugar à triste resistência de sua família. A leveza maternal de Eunice/Fernanda antes da invasão de sua casa contrasta com a dor comedida e o severo cuidado maternal, depois. A vida familiar deles nos é tão próxima.



As cenas fora da casa dos Paiva são laterais. A rua é vista pela câmera 8mm de Vera, a filha mais velha. A mágica é a empatia. A atuação de Fernanda Torres dá vigor e emoção ao filme sem os excessos interpretativos usuais nos filmes atuais. Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, que interpretam diferentes momentos de Eunice, usam a expressão facial e corporal com uma eloquência que dispensa palavras e gestos a mais. A dor e a indignação comedidas têm muito mais efeito do que prantos abertos e explosões de raiva.

 



A visão familiar do mal o faz mais real e nos leva à emocionada identificação com a família Paiva. Hannah Arendt dizia que ao se falar para o público muda tudo. Quando uma família fala ao público sobre sua dor particular, esta se universaliza, passa a ser de todos e leva as platéias às lágrimas. Por isso ela se torna nossa família. Os espectadores sentem a dor como sua porque ela se dá na intimidade do lar. Em uma sociedade digital em que domina o grito e o ódio, o não grito de Eunice/Fernanda Torres cria imediata empatia com o público. São as vítimas de poucas palavras que emocionam, Fernanda Montenegro/Eunice com Alzheimer calada e expressiva diante da TV.

 



O foco em Eunice, desde o sequestro de Rubens e sua morte, e a encenação de Fernanda mantém o espectador ciente todo o tempo da brutalidade do mal na ditadura e solidário com a mãe ferida que precisa cuidar dos filhos. A ambientação na casa familiar, até a mudança para São Paulo, evidencia dolorosamente a ausência de Rubens Paiva todo o tempo. A cena em que o jornalista Fritz Utzeri conta a Eunice que seu marido foi morto marca a mudança para São Paulo e para o ciclo público de Eunice, é quando ela sai, como diria Roberto DaMatta, da casa para a rua.



A frase mais dolorosa com a qual ela reage à temida notícia, para mim, é “você não se importa se eu não o acompanhar até a porta, né?”. Diz tudo o que ela sente. É a linguagem do filme situado na sala de estar de uma família como as nossas que cria a empatia e faz Daniel dizer que ele é para hoje. Fala principalmente com aqueles que não viveram a ditadura ou dela pouco sabiam. Agora todos sabem.

 

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