Duas iniciativas do Legislativo receberam desaprovação quase unânime da opinião pública nas últimas semanas. O PL 1904, que equipara a crime de homicídio o aborto legal após 22 semanas de gestação. Foi repudiado por 88% dos que responderam à consulta pública online. Na opinião pública mais geral, 66% rejeitam o PL do Estupro, mostrou pesquisa do Datafolha. A PEC 9/23, que anistia os partidos do descumprimento das cotas mínimas de destinação de recursos em razão de sexo ou raça nas eleições de 2022 foi desengavetada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, e recusada por 93% dos que responderam à consulta pública.
São duas pautas contra a mulher e contra os negros. As mulheres e meninas negras são as principais vítimas da violência sexual e aquelas que enfrentam mais obstáculos para ter o direito ao aborto legal e, quando conseguem, já passaram das 22 semanas. Muitas demoram a entender ou revelar que foram estupradas e engravidaram, ultrapassando essa marca arbitrária. Além de tratar como homicídio o que é legal, o projeto pune as vítimas de estupro com penas mais severas que seus estupradores.
As cotas financeiras foram criadas porque a obrigatoriedade de atender a cotas de representação feminina e racial não foi atendida. Os partidos listavam mulheres e pessoas negras para as candidaturas, mas não lhes davam as mínimas condições de competição. O perdão corresponderia a convalidar a sabotagem a essas candidaturas. Duas maiorias, mulheres e negros, são historicamente sub-representadas nos parlamentos brasileiros. As cotas nada mais pretendem do que tornar a democracia mais representativa do conjunto da população.
Esta não é uma “pauta de costumes”. É regressão de direitos, retiram ou diminuem direitos já incorporados à cidadania. A retirada de direitos já conquistados, portanto adquiridos, é um retrocesso inconstitucional. Esses parlamentares querem negar os fundamentos do pacto constituinte que reinstalou o regime democrático em 1988. É um paradoxo uma casa parlamentar aprovar por maioria dissimulada e envergonhada, em 23 segundos, a urgência para um projeto de lei amplamente rejeitado pela maioria dos cidadãos. Como casa do povo, a Câmara deveria ouvir a maioria da opinião pública.
A representação política se descolou da população e responde a grupos de pressão, civis ou religiosos, a interesses de financiadores e cabos eleitorais locais. Mas, nada garante aos parlamentares que a reação adversa da opinião pública não contamine sua base eleitoral.
Foi o temor do contágio de suas bases pela opinião geral que fez o presidente da Câmara, Arthur Lira, e lideranças da bancada evangélica recuarem da tramitação na calada do PL do Estupro. A rejeição quase unânime da PEC 9 na consulta pública, já prenunciava a rejeição da coletividade. Ela deixou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pouco propenso a leva-la adiante. Pela mesma razão, Arthur Lira, então condicionou a votação da PEC da discriminação de mulheres e negros à garantia de que Pacheco fará o mesmo no Senado.
A opinião pública não teria como tomar posição nessas questões se não fosse informada pela imprensa livre do que os deputados tentavam fazer de forma dissimulada. A posição editorial da maior parte da imprensa refletiu melhor a opinião pública do que as escolhas parlamentares. Revelada a forma antidemocrática com que se buscava passar aceleradamente e praticamente às escondidas o PL do Estupro e o quê sua aprovação significaria, a sociedade o rejeitou. Este consenso alcançou evangélicos e católicos que preservam valores humanísticos. Os movimentos de mulheres e de defesa dos direitos humanos foram às ruas protestar. Essa reação induziu ao recuo. Mas, é, por enquanto, recuo tático à espera de que a opinião da sociedade esfrie e a imprensa mude de foco.
A representação é sempre um problema a resolver na democracia representativa. Não há um momento de chegada, no qual se possa dizer que a democracia se tornou plenamente representativa. A sociedade é dinâmica, as necessidades mudam, demandando recorrente ampliação da representação. No Brasil acontece o contrário.
A democracia está se tornando menos representativa com o descolamento entre representantes e sociedade. Quando o parlamento se separa da sociedade, a democracia murcha, os direitos de cidadania enfraquecem, o conflito social aumenta. Não é normal na democracia que a sociedade tenha que se defender de decisões contra seus interesses daqueles que a deveriam representar.