
Quando a violência vence a medicina
A saúde pública tem muitos inimigos silenciosos, mas a violência — a explícita e a ‘apenas psicológica’ — é o inimigo que mata mais rápido
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Na sexta-feira (19/9), Belo Horizonte enterrou a médica Maggy Lopes da Costa, de 63 anos. Três dias antes, ela sofreu uma parada cardiorrespiratória dentro de um centro de saúde, após relatar semanas de violência psicológica e exposição nas redes por uma “liderança comunitária”. A visita técnica do Sinmed-MG ocorria ali justamente para apurar esse ambiente de hostilidade. O desfecho foi o pior possível.
Maggy vinha sendo vítima de violência psicológica e perseguição há cerca de três semanas, por meio de repetidos assédios por meio de publicações em redes sociais. O motivo? Não concedeu a uma família um laudo que não poderia conceder, por não ter acesso aos resultados dos exames e testes que sustentariam. Outros dois médicos da unidade também foram vítimas, mas sequer sabemos seus nomes, pois tiveram a sorte de não perder a vida, virando notícia e estatística.
Contrariar a vontade alheia — mesmo quando se tem razão — nunca foi tão perigoso. Hoje, qualquer pessoa carrega nas mãos o poder de aterrorizar vidas, covardemente, por meio das redes sociais. A turma da lacração transforma frustração em linchamento digital e, dia após dia, dilacera a saúde mental de quem ousa dizer “não”.
Os episódios que antecederam o óbito de Maggy estão muito além de “postagens em redes sociais”. Houve uma escalada de hostilidade: vídeos com citações nominais, gravações sem consentimento e conteúdos que, na prática, promoveram um linchamento virtual — destruindo sua imagem, sua reputação e sua saúde mental. Foi uma execução sumária, sem contraditório, sem direito de resposta e sem julgamento justo. Um apedrejamento público encenado na internet — a praça pública da era moderna.
A “fiscalização de palco” — já um subgênero viral — precisa acabar. Quando a lógica do linchamento digital atravessa a porta do posto e invade o consultório, não se viola apenas o rito do atendimento: rasga-se o pacto civilizatório mínimo que deveria proteger quem cuida.
O Sindicato dos Médicos publicou nota de repúdio; a Prefeitura de BH, nota de pesar. E só. No sábado, a família sepulta Maggy; na segunda-feira (22/9), a máquina volta a rodar — mesmas portas sem proteção, mesma exposição dos profissionais, zero responsabilização, nenhuma mudança.
Não é um caso isolado. No primeiro semestre de 2025, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública de MG registrou 1.518 ocorrências e 19 prisões por violência contra trabalhadores da saúde. Virou rotina, não exceção. Números que não viram manchete — pois não geram likes e vendem anúncios – só geram luto.
Maggy trabalhava há décadas no SUS. Era solteira e não tinha filhos, possivelmente em consequência das escolhas que são comuns à vida da médica, dedicando-se aos outros, antes de si. Era descrita por colegas como técnica, humana e discreta — tudo aquilo que se espera de uma médica.
Não romantizemos: a ponta do sistema trabalha com falta de pessoal, insumos, segurança e respeito. Quando a perseguição virtual esbarra em um serviço cronicamente subfinanciado — sem material, sem equipe, sem proteção — o efeito não é soma zero; é multiplicação de risco. Em Contagem, há meses os profissionais atuam sem itens mínimos, inclusive de higiene pessoal. E a única coisa fornecida com regularidade — a água — contaminou centenas de trabalhadores nos últimos dias. O quadro é caótico.
Quando o cenário é esse, o “cliente soberano” vira tropa, o “fiscal cidadão” vira capataz de algoritmo, e o servidor público vira personagem de reality-show em tempo real. O resultado aparece nas estatísticas de adoecimento mental de profissionais de saúde, nos afastamentos, nas escalas furadas e, como agora, nos obituários.
Em meio a essas condições, a pergunta é velha e segue sem resposta: quem protege o protetor? Não é o gestor que finge não ver; não é o político que invade unidade com o celular em punho; não é a plataforma que monetiza a humilhação alheia; não é o Judiciário, que confunde “liberdade de expressão” com licença para constranger quem trabalha em área de risco biológico. Na rede pública, o médico aprendeu a atender de costas para a parede, olhando por cima do ombro, pronto para correr e com o spray de pimenta ao alcance da mão.
Há responsabilidades objetivas e medidas possíveis — sem malabarismo retórico:
• Protocolo e presença: controle de acesso nas áreas assistenciais, segurança visível em horários críticos, linha direta com a Guarda Municipal e PM, e remoção imediata de quem grava e expõe pacientes ou profissionais em área restrita. Isso não é censura; é biossegurança.
• Tipificação e consequência: filmar e expor atendimento sem consentimento, atrapalhar ato médico, constranger servidor em área de risco e incitar ódio contra equipe não é “conteúdo”; crime em potencial (desobediência a ordens legais, perturbação do serviço, constrangimento ilegal, ameaça). A autoridade que se omite, é parte do problema.
• Defesa institucional da equipe: quando a unidade vira ringue, o gestor tem o dever jurídico de representar contra os agressores, pedir medidas protetivas e proteger a saúde do trabalhador (NR-32 não é peça decorativa).
• Cultura e comunicação: pedagógico, permanente, claro: o centro de saúde não é palco. O paciente tem direitos; a equipe também. Gravar sem consentimento em área assistencial viola a privacidade de todos — inclusive do próprio paciente ao lado.
A morte da Dra. Maggy não pode virar estatística. Precisa gerar reflexão, atitude e mudanças. Não se pede heroísmo; pede-se o básico: condições para trabalhar sem ser caçado por “fiscais de like”.
Aos gestores: protocolo escrito, treinamento, segurança e respaldo jurídico — hoje, não na próxima gestão. À imprensa local: contem a história inteira, não apenas o velório. Às plataformas: monetizar humilhação em serviço público tem custo social, e já está chegando em forma de mortes. À sociedade: exigir cuidado de quem é humilhado em serviço é o atalho para perder o que resta da assistência básica à saúde.
A medicina tem muitos inimigos silenciosos: subfinanciamento, burocracia, precarização. Mas a violência — a explícita e a “apenas psicológica” — é o inimigo que mata mais rápido, porque corta por dentro e não deixa hematoma. Desta vez, tem nome e tem data. Que tenha consequência. Para que a próxima coluna sobre violência contra médicos não precise, de novo, ser escrita em tom de despedida.
Renato Assis é advogado há 19 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.
renato@renatoassis.com.br
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.