Renato Assis
Renato Assis
Renato Assis é advogado especialista em Direito Médico, professor e empresário. Seu escritório de advocacia atua com Defesa Médica há 18 anos, em todo o território nacional.
DIREITO&SAÚDE

Redução embrionária: a tragédia dos quíntuplos que o sistema matou

Na dúvida entre preservar a vida ou cumprir a norma, o Brasil mais uma vez, preferiu lavar as mãos

Publicidade

Mais lidas

O ano de 2024 ficou marcado, na história da bioética e do direito brasileiro, por um caso profundamente comovente e juridicamente inédito. Um caso trágico escancarou o abismo entre a ciência médica e a omissão das instituições brasileiras. Um casal paulista, em busca do sonho de formar uma família, recorreu à fertilização in vitro. O que era para ser um capítulo de alegria, transformou-se em um luto irreparável — por culpa de um sistema que, mesmo quando age rápido, é ineficiente demais para proteger vidas.

 

Após a transferência de dois embriões, a gestação evoluiu de forma rara e inesperada: um dos embriões se dividiu em dois, e o outro, em três. Estava configurada uma gravidez de quíntuplos, com dois sacos gestacionais. Um cenário dramático, com risco extremo para a mãe e baixíssima viabilidade fetal, caso evoluísse daquela forma.

 

O médico responsável, com base em evidências técnicas e literatura científica, recomendou a imediata redução embrionária — antes da 12ª semana — para salvar a mãe e ao menos parte de seus filhos.

 

 

A chamada redução embrionária é uma prática reconhecida pela medicina reprodutiva internacional. Tecnicamente, difere do aborto convencional, e consiste na interrupção de um ou mais embriões em gestações múltiplas de alto risco, nas quais a manutenção de todos os embriões representa ameaça real à vida da gestante e inviabiliza a sobrevivência fetal. O objetivo não é interromper a gravidez, mas viabilizá-la — preservando ao menos parte dos embriões dentro dos limites da medicina e da ética.

 

 

Mas havia um entrave ético-institucional: a Resolução 2.320/2022 do CFM, que proíbe a redução embrionária em gestações oriundas de reprodução assistida. Ou seja: mesmo diante do risco iminente, o médico não poderia agir sem respaldo legal. Caso contrário, estaria exposto à responsabilização civil, ética e penal — mesmo que o desfecho confirmasse a urgência da intervenção.

 

Sendo a judicialização o único meio viável para defender as vidas envolvidas, foi ajuizada ação judicial no dia 29 de abril. A sentença de 1ª instância veio no dia 2 de maio: indeferimento total, sob o argumento de que “alto risco não é certeza de morte”. Argumento que para qualquer médico soa como heresia, mas que para servidores do Poder Judiciário, no conforto de seu gabinete com ar-condicionado, soa como justiça. Mas que, na prática, custou vidas.

 

Vieram os recursos, os habeas corpus, os laudos periciais. A Justiça — que costuma ser lenta e ineficiente — autorizou o procedimento no dia 28 de maio, menos de 30 dias antes do pedido inicial. Contudo, era tarde demais: os gêmeos haviam morrido pouco antes, e pouco depois, os trigêmeos também não resistiram. A mãe quase morreu, e o sonho virou trauma.

 

A confirmação da gestação de altíssimo risco ocorreu em 18 de abril. A ação judicial foi proposta apenas 11 dias depois. Em menos de 30 dias, houve decisões em duas instâncias, realização de perícia e movimentação excepcionalmente ágil do processo. Ainda assim, tudo foi em vão: primeiro os gêmeos, depois os trigêmeos. Cinco vidas perdidas. Uma mãe quase morta. E um país que insiste em responder com burocracia a urgências médicas.

 

 

A tragédia ilustra o abismo entre a velocidade dos avanços médicos e a lentidão dos marcos normativos e judiciais. Prova que nosso grande problema não é a morosidade do judiciário, mas sim, um sistema de regulação ética que prefere se omitir, a enfrentar temas difíceis. O medo das instituições de “se comprometerem” com decisões impopulares. Entre o tempo da medicina e o tempo da justiça, venceu a omissão institucional.


Na intenção de evitar a mesma tragédia em outras famílias, foi realizada consulta formal junto ao Conselho Federal de Medicina – CFM, com a finalidade de gerar um novo parecer para casos como o presente, mas a omissão institucional mais uma vez venceu o bom senso: a resposta foi o silêncio. E, como se isso não bastasse, a fria repetição de uma norma que já havia falhado em proteger vidas.

 

É difícil descrever a indignação que casos como esse geram. Não se trata de defender a interrupção da gravidez, como regra. Trata-se de garantir que, quando a vida da mulher e a viabilidade fetal estão em xeque, decisões técnicas e baseadas na ciência prevaleçam sobre dogmas inflexíveis ou omissões corporativistas.

 

 

Por outro lado, a decisão do TJSP, mesmo tardia, foi um marco: reconheceu a legalidade da conduta médica recomendada, qualificou a redução embrionária como medida terapêutica, e reafirmou o princípio da dignidade da pessoa humana. Veio quando já não havia mais vidas a salvar, mas pode (e deve) ser um alerta para as autoridades para casos análogos, que acontecem diariamente no nosso imenso país.

 

Mas será que este caso será o marco histórico que deveria? Pois um caso tão trágico deveria estar estampado nas capas de jornais, para causar alguma mudança. Deveria ser estudado nas escolas de direito, nos cursos de medicina, nas aulas de bioética. Deveria ser pauta nacional. Mas não será, porque expõe, de forma cruel, a incompetência do sistema (e de algumas pessoas envolvidas) em lidar com o tempo real da vida de forma humana, ética e responsável.


O caso, conduzido com brilhantismo pelo advogado Stefano Cosenza, amigo próximo e profissional de notável sensibilidade jurídica, não foi apenas sobre gravidez de risco ou condutas médicas. Foi sobre a urgência de repensar a proteção à dignidade das mulheres, a proteção à vida em primeiro lugar, e o vergonhoso papel desempenhado do Estado frente a lacunas normativas, além, é claro, das omissões dos conselhos profissionais diante de temas polêmicos.

 

 

Enquanto a medicina avança, nossas normas continuam paradas no tempo. Enquanto médicos e advogados pedem urgência, conselhos profissionais respondem com silêncio. Enquanto vidas dependem de decisões, o Estado brasileiro hesita, contorna, procrastina. Até que não haja mais o que decidir.


O caso dos quíntuplos que não sobreviveram não é uma tragédia isolada. É o espelho cruel de como o Brasil trata a medicina: com atraso, omissão e desprezo pela ciência. Enquanto decisões clínicas forem julgadas por quem desconhece a realidade hospitalar, enquanto conselhos se omitirem para evitar conflitos, e enquanto juízes confundirem ética com conveniência, o país seguirá colecionando mortes evitáveis e decisões que chegam sempre depois do luto.


Neste Brasil da judicialização sem critério, da regulação omissa e da ética engessada, até as decisões rápidas chegam tarde demais. Quando a justiça vira mera formalidade, deixa de proteger vidas para apenas legitimar tragédias. Este caso não é exceção: é o retrato fiel de um país onde juízes hesitam, o CFM se omite e a bioética agoniza sob normas que não acompanham a ciência. Enquanto isso, médicos pedem socorro, mulheres pagam com a vida, e o silêncio das instituições continua matando — com novos nomes, novos rostos, e a mesma vergonha institucional.


Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.


Site: www.renatoassis.com.br
Instagram: renatoassis.advogado



As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

Tópicos relacionados:

gravidez reproducao-assistida

Parceiros Clube A

Clique aqui para finalizar a ativação.

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay