No dia 11/06 foi apresentado pelo senador Astronauta Marcos Pontes o Projeto de Lei 2.294/2024, que visa instituir o Exame Nacional de Proficiência em Medicina. Caso se torne lei, somente será possível se inscrever no CRM e exercer a medicina, após a aprovação no exame.
A prova seria aplicada 2 vezes ao ano pelo CFM, em todos os estados. O texto prevê a dispensa de quem já tiver iniciado o curso de medicina quando a lei entrar em vigor, que seria no prazo de 1 ano após aprovação. O projeto é omisso em relação ao médico formado no exterior. Mas, pela lógica, o exame seria imposto após a revalidação do diploma, junto ao MEC. O projeto, que conta com grande apoio das entidades médicas, não recebeu emendas no prazo regimental. Atualmente está na Comissão de Educação e Cultura do Senado, sob a relatoria do senador Marcos Rogério (RO). Para que se torne lei, após ser aprovado no senado deve tramitar também na Câmara, para então ser sancionado pelo Presidente da República.
Segundo o astronauta, o objetivo do projeto é combater a proliferação indiscriminada de cursos de medicina. Nunca saí da estratosfera como o autor do projeto, mas vou me arriscar em hipóteses alternativas: não seria mais coerente fechar os cursos mal avaliados, como feito pelos EUA, que encerraram 50% dos cursos alguns anos atrás? Ou talvez simplesmente proibir a abertura de novos cursos, como feito pelo Japão em 1991 quando decretou moratória de 30 anos? Em 2018 tivemos uma moratória semelhante no Brasil, que estancou o problema por 5 anos. Contudo, o novo (ou velho) governo que assumiu em 2023, trouxe consigo uma nova (ou velha) política, e com o fim da moratória voltamos a abrir cursos de medicina (e a importar médicos de Cuba) mediante uma narrativa que não engana mais ninguém: a falta de médicos no Brasil.
Existem atualmente mais de 575 mil médicos no país, 2,81 para cada mil habitantes, média superior à de países de primeiro mundo como China, Estados Unidos e Japão. Enquanto a população brasileira cresceu 42% desde 1990, a nossa população médica cresceu incríveis 339%. A falta de médicos já foi um problema no Brasil, mas ficou no passado.
Nosso principal problema é a falta de investimento e estrutura no Sistema Único de Saúde (SUS). Vivemos um caos na saúde pública, levando a maioria dos médicos a optar pela rede privada em busca de condições dignas de trabalho, e melhores remunerações. Embora a rede pública atenda a 75% dos brasileiros, ela conta com uma disponibilidade de profissionais 3 vezes menor em relação à rede privada, que atende somente a 25% dos brasileiros, com 3 vezes mais médicos. Este desequilíbrio é consequência da precariedade do SUS, que causa um efeito cascata de consequências graves.
Uma dessas consequências é a desigualdade na distribuição geográfica dos médicos. Como as melhores oportunidades de trabalho da rede privada estão nas capitais mais desenvolvidas, há uma forte migração de médicos para aquelas regiões. Somente a região Sudeste abriga 51% do total de médicos do país, enquanto as regiões menos desenvolvidas sofrem com a escassez.
A solução seria a criação de políticas públicas que fortaleçam o SUS, garantindo melhores condições nas regiões menos desenvolvidas do país, para atração e retenção de médicos. Parece óbvio, certo? Mas, anos atrás, a medida adotada pelo velho (ou novo) governo foi o investimento na abertura de novos cursos de medicina nas regiões carentes. O resultado foi caótico, atualmente 78% dos 250 municípios que contam com escolas médicas têm números insuficientes de leitos de internação, de equipes da saúde da família e de hospitais de ensino, proporcionando um ensino deficiente. Além de formar profissionais com déficit técnico, a migração para os grandes centros se agravou. Além da continuidade da escassez de profissionais nas regiões carentes, houve aumento da concorrência nas grandes capitais, com profissionais malformados.
Vejam que loucura: os problemas alegados para se buscar a solução pelo Exame Nacional de Proficiência em Medicina são consequências direta das políticas do velho (ou novo) governo. E atualmente, diante das consequências, o novo (ou velho) governo repete as políticas que os causaram. Recentemente, foi publicado edital para criação de novos cursos de medicina, sendo protocolados 294 processos no MEC para criação em 182 municípios. Segundo divulgado nessa sexta-feira (19/7) pelo CFM, 73% deles não têm a infraestrutura adequada. Parece o remake de um filme de terror, mas é simplesmente a nossa realidade: um ciclo vicioso que não resolve os problemas, mas os multiplica.
Isto significa que a criação do Exame Nacional de Proficiência em Medicina é um equívoco? Pelo contrário, apoiamos a iniciativa. Contudo, é preciso entender que ele não resolve o problema da abertura indiscriminada de cursos de medicina. O projeto sequer prevê a punição às escolas que tiverem alto índice de alunos reprovados. Os grandes prejudicados serão os próprios alunos, e as escolas seguirão faturando cifras galácticas através da reiterada prática de estelionato educacional. Implantar o exame para resolver este problema é como defender que a terra é plana, após tê-la visto do espaço.
Segundo o astronauta, o modelo de avaliação a ser adotado é inspirado no aplicado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ou seja, combateremos a proliferação de escolas médicas usando o modelo das escolas de Direito. Seria cômico, se não fosse trágico! O exame da OAB passou a ser obrigatório em 1994, quando o Brasil tinha 235 cursos de Direito. Houve um “singelo aumento” de 706% após o exame, chegando a 1.896 cursos, e atualmente o Brasil tem mais cursos de Direito do que o resto do mundo! É com esse modelo que nosso senador pretende combater a proliferação dos cursos de medicina? Talvez a lógica do astronauta se aplique em alguma outra galáxia, mas não por aqui.
Isto significa que o exame da OAB deve ser extinto? Não, mas prova o óbvio: o exame não impede a abertura indiscriminada de cursos. Entretanto, segundo o astronauta, pelo menos ganharemos qualidade nos cursos de medicina, certo? Mais uma vez, recorreremos a uma pequena dose de realidade para desconstruir a narrativa: segundo estudo realizado pela OAB em 2022, 89% dos cursos de Direito são de péssima qualidade.
O mais preocupante é que os números do ensino médico já guardam uma trágica semelhança com a triste realidade do ensino jurídico. Desde 1990, quando existiam 78 cursos de medicina no país, houve um aumento de incríveis 500% chegando a 390 cursos em 2024, colocando-nos no segundo lugar do mundo, atrás somente da Índia (que tem uma população 6 vezes maior). Nossos 390 cursos de medicina ofertam 42 mil vagas por ano, volume que em breve tornará o Brasil o país com mais médicos no mundo (sem contar as vagas dos 294 cursos que aguardam aprovação). No caso dos advogados, o Brasil já possui cerca de 1,5 milhão de profissionais, perdendo só para a Índia. Talvez nosso astronauta também crie um projeto de lei para colonizar o planeta Marte com médicos e advogados - mas pode ser que falte espaço no planeta vermelho.
Otimista, nosso senador também espera que o exame (nos moldes da OAB) garanta a qualidade dos médicos no mercado. Deixe-me ver se entendi: após criarmos centenas de cursos fajutos em localidades sem estrutura adequada para o ensino, proporcionando aos alunos 6 anos de ensino deficiente, teremos uma prova que “conserta tudo”, e despeja médicos brilhantes no mercado? Acho que o nosso viajante estelar teve algum contato imediato em suas viagens pela galáxia, trazendo para o Congresso Nacional estratégias quânticas totalmente desconhecidas pela nossa ciência, pois como bom terráqueo, não vejo qualquer lógica nesta narrativa.
Esse exame é aplicado há 30 anos aos advogados brasileiros, e grande parte dos nobres causídicos está garantindo o pão de cada dia com corridas de Uber! Como a concorrência nos aplicativos de transporte já está acirrada, talvez nosso senador apresente um PL criando a especialidade “medicina cósmica” para receber os novos profissionais.
Embora poucos saibam, já existe previsão legal para avaliação dos cursos de medicina, na lei que instituiu o programa Mais Médicos, em 2013. Por que essa avaliação não é realizada? Trata-se de um enigma tão misterioso quanto um buraco negro. O PLS 312/2015 foi apresentado para regulamentar o tema, sendo sucedido pelo PL 6016/2019, mas não há sinal de vida inteligente no Congresso Nacional disposta a levá-los adiante.
A impressão passada é de que a proliferação dos cursos de medicina no Brasil é tão irresistível quanto a gravidade. Contudo, está longe de ser um mistério inexplicável do macrocosmo, pois há padrões relevantes que podem explicar o fenômeno. Em 1990, somente 40% das 78 escolas de medicina eram privadas. Atualmente, elas já somam 66% das 390 existentes no país. Temos 294 processos no MEC para abertura de novas escolas médicas, e provavelmente todas serão privadas. Há um silencioso processo de privatização do ensino médico no Brasil, e por que isso é tão relevante? Ora, porque o objetivo das instituições de ensino privadas não é prover conhecimento, mas sim, gerar lucros.
Não sou engenheiro da NASA, mas vamos aos cálculos: cada nova turma de 60 alunos, com mensalidades médias de R$ 10 mil, gera um faturamento anual de R$ 7,2 milhões. Nos 6 anos do curso, o faturamento total com cada turma chega a R$ 43,2 milhões. Se nos próximos 5 anos forem iniciadas 10 turmas, em cada um dos 294 novos cursos recentemente aprovados (totalizando 2.940 novas turmas), o faturamento gerado será de R$ 127 bilhões.
Talvez meu raciocínio explique o que há por trás desta nebulosa, talvez não. Mas é indiscutível que ensino médico no Brasil caminha a passos largos para o buraco negro, assim como várias outras prioridades sociais. Enquanto isso, nossa sociedade segue cada vez mais cega e dividida em duas patéticas torcidas organizadas, balançando seus pompons e discutindo uma única coisa: quem é menos horrível, o presidiário ou o imbroxável.
Não entendam mal, sou a favor do exame para os médicos. Contudo, sou contra tentarem emplacar o projeto como “combate à abertura indiscriminada de cursos”, criando uma cortina de fumaça para entreter a classe médica e a sociedade, enquanto todos são enganados com a abertura de mais 294 cursos de medicina. Ainda que o Exame de Proficiência fosse aprovado, seria uma esmola, diante de tudo o que perdemos por trás dessa grande mentira.
Quanto às chances de aprovação do projeto, que tal mais uma pequena dose de realidade? Embora seja de autoria de um astronauta, o projeto não traz nenhuma novidade “de outro planeta”. Seu conteúdo é um repeteco de vários anteriores (PL 650/2007, PLS 165/2017, PL 4667/2020, PL 2264/2022 e PL 785/2024) e seu destino não deve ser diferente: ficar emperrado na má vontade do Congresso Nacional.
Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.
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