Lorena Marcondes estava em liberdade desde agosto do ano passado -  (crédito: Reprodução / Redes Sociais)

Lorena Marcondes estava em liberdade desde agosto do ano passado

crédito: Reprodução / Redes Sociais

Na semana passada, foi presa pela segunda vez a biomédica responsável pela cirurgia que deu causa à morte de uma paciente, em maio do ano passado. O óbito ocorreu após complicações em um procedimento realizado na clínica dela, que não tinha alvará sanitário e estrutura para a realização de cirurgias. O caso retrata com detalhes o modus operandi da invasão da medicina, que detalharemos a seguir.

 

No Instagram, onde tinha mais de 110 mil seguidores, a biomédica anunciava sua técnica de “lipoaspiração sem cortes” pela “bagatela” de R$18 mil. A paciente contratou com um desconto de 33%, com “encaixe rápido” e sem avaliação de risco cirúrgico ou qualquer outro exame.

 

Às autoridades, a biomédica alegou ter realizado apenas um procedimento a laser aprovado pelo seu Conselho, embora não houvesse na clínica qualquer sinal do aparelho necessário (mas sim, vestígios de um procedimento cirúrgico). Também não foram encontrados pela polícia o prontuário da paciente e os registros da cirurgia. A biomédica acabou presa em flagrante, juntamente com a técnica de enfermagem que a auxiliou na cirurgia.

 

Façamos um breve parêntese: segundo seu próprio Conselho Federal, os biomédicos podem realizar alguns procedimentos a laser, como depilação e remoção de tatuagens, mas nunca lipoesculturas, que são cirurgias restritas aos cirurgiões plásticos. Já segundo a SBCP/MG, este “mero” laser atinge temperaturas acima dos 100º C, sendo sua aplicação cirúrgica e invasiva, portanto, restrita a cirurgiões em blocos cirúrgicos, com o acompanhamento de um anestesista.

 

 

Após as análises técnicas, o Instituto Médico Legal (IML) atestou que a paciente foi submetida a uma cirurgia de lipoescultura com enxerto nas nádegas, confirmando o crime de exercício ilegal da Medicina, previsto no artigo 282 do Código Penal. O laudo da paciente indicava 10 perfurações no abdômen e 2 nos glúteos, sem qualquer indício de uso do laser. Segundo o legista, a morte foi causada por uma cadeia sucessiva de eventos: traumatismo abdominal penetrante (evidência da lipoaspiração), choque hemorrágico, intoxicação anestésica (por grande quantidade de lidocaína), parada cardiorrespiratória, e óbito.

 

Este foi o desfecho de uma cirurgia que deveria ser realizada por dois médicos (cirurgião plástico e anestesista), mas que foi feita por uma “médica de mentirinha”, algo cada vez mais comum no Brasil. O valor pago pela paciente foi equivalente a uma lipoaspiração de verdade, com um médico de verdade, o que comprova que o preço não foi o grande atrativo (apesar do desconto). O que se nota como a principal “isca”, foi a promessa de entregar os mesmos resultados de uma lipoaspiração, sem os riscos inerentes à cirurgia que mais mata no Brasil. Contudo, o procedimento realizado foi exatamente lipoescultura (um pouco mais complexa que a lipoaspiração) com o risco severamente agravado por ter sido realizado por profissional absolutamente incompetente, sem a realização de exames e em local inadequado, sem qualquer condição de segurança.

 

Além do exercício ilegal da medicina, a conduta se enquadraria tranquilamente no crime de estelionato, previsto no art. 171 do Código Penal: Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento. Apesar de todos estes agravantes, a prisão preventiva foi revertida em domiciliar após 15 dias, e totalmente relaxada depois de mais algumas semanas.

 

O mais absurdo do caso é que, desde 2021, o Conselho Regional de Biomedicina 3° Região e a Vigilância Sanitária sabiam que a clínica realizava cirurgias de maneira irregular. Durante uma fiscalização, foram encontrados no local materiais cirúrgicos e manuais instrutivos de cirurgias plásticas, como rinoplastia e otoplastia. Na época, a biomédica já acumulava diversas denúncias por uso de medicamentos não autorizados pela Anvisa, uso de CRM de terceiros e até omissão de socorro. Em 2022 ela foi acusada de deformar a orelha de uma criança de 4 anos durante um procedimento, necessitando posterior correção por um cirurgião plástico. Apesar de tudo isso, a licença profissional da biomédica só foi suspensa em meados de 2023, por decisão judicial proferida em processo na qual a biomédica é acusada de deformar a boca de outro paciente, em 2022.

 

Um ponto em especial chamou a nossa atenção: segundo as investigações, a biomédica atuava em “parceria comercial” com uma médica, que assinava as receitas de medicamentos, possivelmente sem avaliar os pacientes. Conforme o inquérito, as profissionais faziam publicidade conjunta nas redes sociais e atendiam pacientes em parceria. Em sua defesa, a médica alegou que a colega teria roubado seu carimbo, e falsificado suas assinaturas. Se as investigações confirmarem que as ilegalidades ocorreram com a participação de uma médica, o caso certamente ganhará contornos ainda mais trágicos para a classe médica em geral e toda a sociedade.

 

Após cinco meses de investigações, a biomédica foi indiciada por homicídio duplamente qualificado (por motivo torpe e mediante traição) com dolo eventual (por assumir o risco de uma possível fatalidade) e por exercício ilegal da medicina. Seus funcionários foram indiciados por homicídio, fraude processual e ocultação de provas (foram vistos retirando caixas da clínica enquanto a vítima era atendida pelo Samu).

 

Em julho de 2023, a justiça determinou a suspensão da licença profissional da biomédica, seu afastamento das redes sociais e a proibição de qualquer tipo de consultoria relativa ao seu exercício profissional, além da proibição de estabelecer contatos com as testemunhas. Contudo, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) comprovou o descumprimento das medidas, inclusive a continuidade da atuação nas redes sociais através de um codinome e a intimidação de testemunhas, ocasionando na sua segunda prisão preventiva, ocorrida na última sexta-feira em Nova Lima/MG.

 

A invasão da medicina, principalmente da especialidade de cirurgia plástica, por profissionais de outras áreas, já pode ser considerada uma epidemia. Essa invasão ocorre com a conivência dos conselhos de classe das respectivas profissões, que publicam resoluções “autorizando” a realização de atos médicos. É cada vez mais ostensiva junto aos pacientes, sobretudo nas redes sociais. E o mais grave: é totalmente ignorada pelas autoridades, que deixam a sociedade à própria sorte, conforme comprovado no presente caso.

 

Para os médicos, um importante alerta: tenham muito cuidado com as “parcerias comerciais” realizadas com outros profissionais. No presente caso, independente de culpa nos crimes da biomédica, o nome da médica acusada de participação já foi ultrajado e divulgado massivamente nos meios de comunicação. Caso as acusações se confirmem, ela pode perder seu CRM e até a liberdade. A invasão da medicina por não médicos é um problema grave de toda a sociedade e sobretudo da classe médica. Mas quando ela ocorre com a participação ou conivência de médicos, nos mostra a sua pior faceta.


Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país. E-mails para renato@renatoassis.com.br