Arrumando a bagagem
A análise se resume à escuta e à decantação do sintoma, a fim de libertar o sujeito. Ela permite o rearranjo que alivia o peso do sofrimento
Mais lidas
compartilhe
SIGA NO
Perde-se muito tempo na vida sofrendo com reminiscências. Lembranças da infância, de tudo vivido com nossos pais e irmãos. De ruim e bom. Dos traumas que são as coisas mais marcantes que estavam acima do que poderíamos suportar e sentimos como violência, um arrombamento.
Escolas onde estudamos. Venturas e desventuras, bullyings, amigos que ainda temos, muitos outros perdidos no tempo.
Leia Mais
Recebemos carinho e amor, às vezes em excesso, cuidados exagerados e superprotetores, mas muitos também ficaram relegados ao cantinho do qual se lembram com um gosto amargo da solidão e do abandono. Os que foram agredidos, injustiçados, incompreendidos e por aí vai.
Impossível descrever toda a gama de acontecimentos aos quais estamos sujeitos na vida. Independentemente dos fatos, tudo o que aconteceu nos constitui e justifica o modo como nos viramos com as bagagens trazidas, as marcas da vida no corpo, e o que nos tornamos.
São nossos sintomas, entendidos na psicanálise não como sintomas físicos, que se curam com medicações e podemos ver nos exames. São psíquicos: trata-se do modo como lidamos com tudo o que vivemos e o que restou em nós. No que nos tornamos e como lidamos com isso.
Parece que estou dando voltas, mas já digo que tudo isso é o que se passa em nossos consultórios e escutamos com as mais diversas interpretações. Das marcas que constituem o sujeito, e que, na associação livre das palavras, nessa fala livre, o analista extrai muito mais do que se fala, porque dizem mais do que a narrativa em si, com que cada um entende sua história e seus percalços na vida.
De nada adiantaria dizermos aos pacientes que o que passou, passou. E que deveriam parar de perder tempo com lembranças que deixaram marcas e que podem arrumar suas vidas de outro modo.
De nada valeria dizer isso. Porque o que marcou se repete à revelia da consciência, e essa repetição de que o sujeito não se dá conta é como ele pôde se arranjar consigo, uma insistência da realidade formatada como sempre foi, do que sempre sofreu, sempre reagiu assim, mas sempre na esperança de ser compreendido ou de se entender.
A rememoração em palavras também se faz em atos e por isso se anda em círculos, voltando sempre ao mesmo ponto. A angústia e a ansiedade desencadeadas sem estar relacionadas a algum fato, esse sentir difuso sem significado apontam que a pulsão está solta, separada de algum conteúdo. Esse sentimento vago e doloroso está solto e desatrelado de algo esquecido. Por isso se repete e foi experimentado tantas vezes. A vida passa e a pessoa se reencontra nas mesmas situações em diferentes contextos.
Sim, rememoramos e nos cansamos de repetir queixas, sempre as mesmas. Insistimos na realidade sem saber que há um real sem sentido inassimilável.
A análise se resume exatamente à escuta e à decantação do sintoma, a fim de libertar o sujeito. Ela permite que se rearranje a bagagem, aliviando o peso, por se permitirem as perdas necessárias e, outras vezes, porque responde com outras palavras, ou silêncio, porque se desvencilha da submissão aos ideais, às exigências de seu juízo crítico, e também, por conseguir colocar o desejo a seu modo, fugindo das adaptações ao que se espera dele. Na verdade, a delícia de viver é descobrir-se fiel a si mesmo, a seu modo.
É bom falar sobre tudo isso e rearrumar as coisas, encontrar uma saída fora do que nos acomode no gozo do sofrimento, o masoquismo. Isso se faz quando, escutados, nos escutamos e nos reinventamos.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
