
Laços necessários
A epidemia da solidão faz surgir iniciativas coletivas e menos digitais. Projetos de moradia entre amigos e outras ações têm sido observados
Mais lidas
compartilhe
SIGA NO

A psicanálise não é imune ao deslizamento que ocorre no curso dos tempos, escreveu a psicanalista Márcia Rosa no livro “Onde andarão as histéricas de outrora?” (edição da autora, 2019). Da ética do mestre antigo, ancorada em ideais, passa a ser utilitarista, promovendo o valor de uso dos objetos no início do século 19, incentivando as trocas e a utilidade disseminada socialmente.
Os objetos passam a ocupar lugar central na vida contemporânea, já que a ciência serve ao mestre capitalista, que tomou o lugar dos antigos mestres e sábios. Uma inversão capaz de mudar o mundo e a relação das pessoas através da produção da ciência de objetos despejados infinitamente no mercado.
O capitalismo fez as coisas do amor, por sua característica instável e contingente, saírem de foco, dando lugar à estabilidade do objeto de gozo. Brinquedinhos adquiridos que permitem que as pessoas brinquem sozinhas em suas casas, no conforto progressivamente antissocial. Dos vínculos íntimos, hoje temos vínculos úteis.
Uma inversão que toma velocidade, como se andasse sobre rodas, segundo Lacan, isso não pode andar melhor, mas anda rápido demais, isso se consome e tão bem que se consuma.
O consumismo é uma consumação. O mundo contemporâneo, regido pelo discurso capitalista com a proliferação de brinquedinhos para nosso desfrute, nos aliena de tudo que tenha qualquer proximidade com o vazio de sentido do real.
Cada vez mais, nos isolamos de tudo o que não podemos controlar dentro de nossas quatro paredes para “evitar fadiga”, como tenho escutado frequentemente esses dias. Vejam que isso cria, a cada dia, mais isolamento – queixa que se repete nos relatos dos solitários, que não encontram em si os motivos que os levaram a isso.
A questão é que as pessoas envelhecem, adoecem e precisam de alguém. Não apenas de acompanhantes para as consultas, para fazer exames, e, às vezes, até mesmo para a locomoção comprometida e higiene pessoal, no caso dos mais fragilizados. Nem sempre se pode despender altos valores para contratação de serviços profissionais para atender a tais necessidades.
Um bebê é humanizado pelas marcas feitas em seu corpo natural por experiências afetivas. Sem isso, permanece em seu corpo natural, sem marcas que o incluam como sujeito de sua vida. Precisa ser escutado, de alguém que fale com ele, do som afetivo de uma voz, de um desejo não anônimo, um olhar.
Uma pesquisa do Pew Research Center (2023) indica que alta porcentagem de adultos nos EUA, ouso generalizar, acha difícil fazer novos amigos, relatando ter perdido conexões importantes desde a pandemia. Em lugar de vínculos íntimos e cotidianos, crescem as amizades de baixa manutenção: convenientes, digitais, espaçadas.
A vida sobre rodas, rápida, nos consome na cultura do desempenho, do tempo é dinheiro, e ninguém despende esse valor, as relações afetivas se perdem. O afeto se tornou ativo raro que vem sendo substituído por redes profissionais e relações estratégicas, vínculos rápidos e úteis com menor demanda presencial possível, enfim, funcionais. São laços necessários, sem afeto, porém úteis em momentos de grande carência e demanda de cuidados de toda natureza.
A epidemia da solidão faz surgir uma reação de incentivo a projetos coletivos e menos digitais. Projetos de moradia entre amigos e outras iniciativas têm sido observados, como destacou a revista Architectural Digest.
Em tempos de vínculos líquidos e fluidos, afeto é produto de luxo. Existem correntes de resistência, entretanto. Convenhamos, não é coisa simples competir com a exclusão de afeto e o abandono das coisas do amor que se apresentam na era dos excessos, incrementados pelo discurso capitalista.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.