
O homem desafetado
A negação da gravidade dos acontecimentos nos deixa descrentes das qualidades do homem, de sua humanidade
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O homem não nasce bom nem ruim. Ele nasce em estado natural. Sem adjetivos, sem qualidades. Nasce porque um outro desejou ou permitiu. Não pediu para nascer, mas, veio à luz. A experiência do nascimento é considerada nosso primeiro trauma, respirar, sair da proteção do líquido amniótico, sentir a atmosfera, deve ser quase como cair no vácuo, um grande impacto.
Nascer inaugura o desconforto da absoluta dependência e, mais tarde, da obrigação de sobreviver e lutar pela vida. O desconforto é maior e a vida mais difícil quando não desejados e acolhidos. Precisamos ser alimentados, mas também acalentados. Mas nem sempre é assim.
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Vir ao mundo não é um acontecimento simples. É complexo, e nossas primeiras experiências são muito importantes, porque fazem marcas no corpo natural, sem nenhuma marca. As marcas afetivas são feitas no corpo pela presença, voz, olhar e calor dirigidos ao bebê. É o que nos humaniza. Sem isso, são severos os prejuízos pela falta de um desejo, não anônimo, dirigido a nós. Bebês carentes de estímulos maternos ou de outros podem até morrer de hospitalismo, um tipo de depressão, e outros danos, como a falta de identidade a instabilidade nos relacionamentos posteriores.
Os processos psíquicos iniciais são registros neuronais quantitativos e qualitativos no interior do aparelho neuronal. A percepção é anterior à consciência, à inauguração do inconsciente, ao estabelecimento da fala. Portanto, a qualidade da satisfação influi sobremaneira nas marcas feitas que forjam seu percurso.
E disso decorrem as questões da saúde mental, de comportamento e sociabilidade. Porque as primeiras marcas de afeto nos permitem acesso ao simbólico. Nos permitem interiorizar os ideais da cultura, os interditos e atributos necessários ao compartilhamento da vida comum.
Se o afeto não nos marcou, e humanizou, as falhas nos processos afetivos, partilhar valores, limites e regras sociais será mais difícil. Serão mais difíceis a empatia, as parcerias, os pactos legais. Causar sujeitos antissociais, foras da lei, que é o mais importante pacto entre nós.
Atitudes equivocadas e reprováveis, no que concerne às grandes questões do coletivo, do Planeta, da crise climática, do desmatamento, dos indígenas, da faixa de Gaza, da Ucrânia, entre tantas outras, são o espelho da humanidade que não se respeita como civilização, como construção humana por um mundo que compartilhamos.
A negação da gravidade dos acontecimentos nos deixa descrentes das qualidades do homem, de sua humanidade. Se ele nasce sem qualidade, se foi educado, deve aos semelhantes melhores escolhas, se os leva em consideração.
Quando a educação não alcança o grau de contenção que nos permita ver que o outro existe, o que se mostra é o homem sem ética, perigoso para todos os demais, o que escarnece diante da carência, da dor, do sofrimento alheio, da devastação, sem considerar o coletivo, porque não pode assimilar em si nada melhor.
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A única coisa que garante a sobrevivência da Terra e dos homens é a possibilidade de renunciar a seus próprios interesses para não ferir os demais, por todos.
O homem nasce sem qualidade, mas ele pode escolher ser bom ou ruim. Mas a condição para isso vem do berço, é pautada pela ética, que infelizmente não está ao alcance dos desafetados. Sem ética, o homem torna-se predador, fará o pior sem se incomodar com o prejuízo alheio, se lhe for lucrativo. E, ensinar o respeito, o limite, educar para querer o bem comum e não apenas o seu, é a ética do bem-viver. Lamentavelmente, não é o que assistimos todos os dias nas famílias, na política nacional, internacional, que fazem vacilar as certezas de que o homem seja capaz de administrar um futuro.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.