Regina Teixeira da Costa
Regina Teixeira Da Costa
Em dia com a psicanálise

O paradigma do nosso tempo

As crianças, com acesso a celulares, quando não os seus, o dos pais, sabem, talvez, até mais do que adultos sobre o que se passa no mundo

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Por mais que as pessoas digam que a psicanálise é ultrapassada e que “Freud já era”, um esclarecimento é importante: a psicanálise acompanha o progresso do mundo. Ela se renova com as mudanças de costumes resultantes de fatores políticos, econômicos e sociais, que influenciam o comportamento. É seu papel escutar.


Freud nos forneceu o primeiro esboço da dimensão psíquica, um aparelho psíquico, dotado de um eu e supereu, consciente e inconsciente. As primeiras impressões recebidas do mundo externo, pelo som da voz da e presença afetiva, que marcam o corpo. Marcas que serão um mapa, planta baixa, da identidade. Antes mesmo das palavras que virão logo após. O aparelho psíquico se estrutura humanamente e nos distingue dos animais da natureza pela linguagem.


Freud está à frente de seu tempo também porque deu voz às mulheres, até então marcadas pela submissão a forte poder masculino. Porque afirmou a sexualidade infantil. Naquela época, ainda não vivíamos sob égide do capitalismo, que se consolida no século 20 e atinge agora seu ponto mais alto.


A clínica com pacientes mudou porque o mundo mudou e a vida das pessoas absorveu os impactos e consequências disso. Os sintomas andam com o mundo. A clínica mudou desde Freud. Da interpretação passou à clínica do corte, da escuta da ressonância das palavras, da topologia e matemática. Numa escuta do dito que está por trás do que se diz.


O excesso é o paradigma de nosso tempo. Os sintomas como toxicomania, alcoolismo, anorexia, bulimia e, ainda, os mais discretos, como o vício em adquirir e comprar, a inquietude de viver em ação, o isolamento no mundo virtual, o narcisismo exacerbado. As vozes do mercado prometem felicidade, comandam o gozo em tempo integral. Uns sucumbem ao gozo do excesso de embriaguez e alienação, outros resistem ao excesso com a recusa.


O documentário americano “Geração riqueza” (2018) retrata, nas fotografias de Lauren Greenfield, a cultura materialista e obcecada com a aparência. Um ensaio histórico, que testemunha as bruscas oscilações da economia global, do Sonho Americano corrompido (Trump deseja reascendê-lo) e dos custos humanos no último estágio do capitalismo, do narcisismo e da ganância. Na busca da felicidade, do dinheiro.


No alto capitalismo, lançamentos proliferam para uso e abuso. Diversão ao alcance de todos! Produção de lixo, poluição dos mares. Tecnologia e Internet aquecem a velocidade da entrega imediata. Nada mais é ocultado, nem mesmo proibido. As crianças, com acesso a celulares, quando não os seus, o dos pais, sabem, talvez, até mais do que adultos sobre o que se passa no mundo. Pais ignoram por onde os filhos se consomem nos desafios perversos que levam ao suicídio e assassinato, como inalar desodorante.


Sim, os sintomas mudaram, a clínica é outra. Os ares da austeridade se foram. O gozo dos objetos tem preponderância sobre o outro, do qual podemos prescindir. Tudo isso promoveu mudanças sintomáticas. O sintoma não é mais formação de compromisso entre o desejo antissocial e a regulação superegóica e o sofrimento moral.


Da clínica da falta e do desejo à do transbordamento, no ilimitado que, sem barreiras simbólicas, é presa do gozo e produz uma relação com o objeto que supera os laços sociais e investe numa relação com os objetos infinita, nunca suficiente, para além da bipartição clássica entre psicose e neurose. O excesso é o paradigma de nosso tempo.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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