Regina Teixeira da Costa
Regina Teixeira Da Costa
EM DIA COM A PSICANÁLISE

Nosso bem, nosso mal

A civilização nos trouxe até aqui com conforto progressivo, mas nos lançou na ilusão desesperada pela felicidade, e isso tornou-se o maior tormento

Publicidade

Mais lidas

 

A civilização suaviza o caráter do homem, tornando-o menos sanguinário e dado à guerra? Se olharmos ao redor, por acaso, não percebemos que o sangue corre a jorros? Somos capazes de dizer o que a civilização tornou mais brando em nós? Tais palavras, escritas pelo grande Dostoiévski em sua obra “Memórias do subsolo” (1864), nos atiram ao chão. Esse autoexame da subjetividade desmascara nossos ardis.


Nossas virtuosidades encobrindo vilezas. Nossas ilusões superando a lucidez. E nossa lucidez nos condenando à vergonha e à tolice, quiçá à loucura. Uma obra sagaz, brilhante com uma pitada amarga, de se ler pensando no desengano da busca da felicidade. No excesso da intenção de satisfação pulsional nos arrastando à autodestruição.


Não há como reler essa obra sem associá-la a outro grande escritor ganhador do prestigioso Prêmio Goethe da cidadedeFrankfurt em 1930. Ninguém menos que o próprio Freud, apontando o subsolo como o subjetivo, o inconsciente, o que não queremos saber, o que se esconde sob o véu do esquecido.


Em sua obra “O mal-estar na civilização” (1930), discute o progresso da civilização como força de união em defesa da vida, contra as doenças, a guerra, as catástrofes e a agressividade autodestruitiva humana. Aponta o excesso pulsional que nos faz passionais e as consequências nefastas.


Freud considera o programa da cultura que se opõe ao instinto natural de agressão dos seres humanos, à hostilidade de um contra todos e de todos contra um. E quem de nós poderá negá-lo diante da nossa história passada e da atualidade?


Somos inseridos na civilidade ao preço do controle dos instintos naturais como ódio, com o “ame seu próximo como a ti mesmo”, somos adestrados a inibir a agressividade, com a qual nos defendemos, contra estranhos que nos parecem ameaçadores. A condenação da maldade em nós e contra os semelhantes.


A educação nos faz reprimir partes da nossa natureza, negá-las e desconhecê-las, revertendo-as a opostos. Nos recobrimos dos contrários. Somos virtudes plantadas sob nossa verdadeira natureza brava. Alguns lúcidos já enlouqueceram diante dessa verdade insuportável.


Porém, o caminho da humanidade nos convoca a reconhecer que não somos menos sanguinários. O somos das mais variadas e criativas formas. E não admitir isso é permanecer cativo da natureza e incapazes de reconhecer nosso maior inimigo que somos nós próprios.


A civilização nos trouxe até aqui com muitos ganhos, facilidades, descobertas maravilhosas, conforto progressivo, mas nos lançou na ilusão desesperada pela felicidade, e isso tornou-se o maior tormento. Somos obrigados a ser felizes e essa ilusão nos faz amargos diante da realidade, que nos priva dessa felicidade idealizada prometida.


Para viver bem, precisamos conter a ânsia de sermos completamente qualquer coisa: felizes, infelizes, perfeitos ou imperfeitos. Somos humanos. Falhos, errantes, faltosos, divididos. Não existe amor sem falha, nem ira, que nos tome a vida toda.


Somos excesso pulsional que necessita de contenção. Não podemos confiar plenamente em nossa natureza passional. Somos fera ferida. Saber disso torna possível conter parte desses instintos, mas, de modo geral, no caminho da humanidade percebemos que, na luta entre vida e morte, a autodestruição ganha terreno.


Nos perguntamos por que somos impotentes em conter o que nos destrói e ao nosso mundo. Já se anuncia a morte do planeta como irreversível, o que muitos ignoram. E, daí, retornamos à pergunta: a civilização nos protegeu de muitas pragas, catástrofes, doenças, porém, é impotente diante da agressividade dos acumuladores, assassinos, preconceituosos e ambiciosos. Esse será nosso mal, nosso fim. Cavado com as próprias mãos, que também já fizeram o bem.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

Tópicos relacionados:

coluna estado-de-minas psicanalise saude

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay