Passados 78 anos desde que as mulheres foram às urnas pela primeira vez na Itália, esta história é ainda recontada. E precisamos continuar falando sobre as mulheres no mundo. Mesmo que muitas coisas tenham mudado, como os direitos civis garantidos por lei, a liberdade de desejar, ter uma profissão, ainda esperamos superar o machismo estrutural.
Estrutural porque ele permeia o pensamento de toda a cultura. Ele não é exclusividade dos homens que são seus beneficiários diretos. Também as mulheres são impregnadas por mentiras tão disseminadas que quase se tornam verdades. Tanto é que as próprias mulheres educam seus filhos com valores que sustentam ainda hoje o machismo na sociedade.
São as mulheres que transmitem de maneira direta e indireta a distinção entre os direitos e deveres diferenciados para meninos e meninas. Isto faz com que esteja intrínseco ao pensamento comum, latente na sociedade e as posturas que justificam a violência contra as mulheres e os maus hábitos dos homens. Eles ainda não renunciaram de muitas vantagens sobre a mulher, como seus antepassados.
Os direitos que negavam às mulheres: estudar, ler, sair desacompanhada, ter opiniões além da cama, copa e cozinha. Valores colonialistas que permanecem ativos e destrutivos ainda no nosso tempo.
No premiado filme italiano “Ainda temos o amanhã” (2023), de Paola Cortellesi, assistimos a uma família no pós-guerra em Roma.
Um filme original, surpreendente, que, em seus 118 minutos, em preto e branco, captura nossa atenção. A história de uma mulher, mãe de três filhos, que vive conformada à sua situação com um marido violento e ignorante que cerceava todos os seus direitos e que a castigava por tudo que dava errado, fosse culpada ou não.
Cortellesi espelha a pesada repetição da história de muitas famílias, ainda hoje presente, como nos mostram as taxas altas de violência contra a mulher, que nenhuma medida protetiva de fato protege, quando o amor se torna ódio.
Amor e ódio, amódio ou enamoródio, palavras usadas pelo psicanalista Jacques Lacan ao se referir à vida amorosa dos casais e a esta passagem do amor ao ódio, quando se pretende um amor sem falta. Amor e ódio são como as duas faces inseparáveis de uma mesma folha.
Quando não se compreende que as relações são incompletas, não se pode fazer um par perfeito, não existem dois com desejos iguais, e cada um tem suas diferenças, que devem ser administradas mais do que suprimidas. Supressão possível apenas com a anulação de uma das partes em favor da outra. Alguém renuncia ao seu desejo pelo outro. Assim como fez Délia, em 1946, em favor dos caprichos e da ignorância do marido, bronco e burro.
Um belo dia, se é que existiram, Délia, mulher submissa, e mãe zelosa recebe uma misteriosa carta cujo teor não temos a menor ideia, até o final do filme. A carta desperta uma esperança perdida. Enfim, pensamos, escapará desta sina! Carta que nos surpreende nas últimas cenas. E só então compreendemos o valor e a importância da atitude da mulher na construção de uma saída para seu destino.
A emocionante conclusão aponta para a importância do posicionamento de cada um, não apenas no que se refere à sua vida privada, mas no que concerne ao coletivo. Ao que faz andar o mundo. Avançar nos costumes, conquistar direitos, desejar, mesmo que a passos de formiga, é uma conquista fundamental no que diz respeito a toda vida.