
Muito além do Tarifaço
Por trás do tarifaço, porém, há uma velada preocupação do governo trumpista com o explosivo percurso da dívida federal americana, hoje beirando a casa dos 120%
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O temido anúncio das chamadas “tarifas recíprocas” americanas finalmente aconteceu no último 2 de abril – que Trump apelidou como “Dia de Libertação da América”. Com as plaquetas das novas tarifas em suas mãos, Trump lembrava o profeta Moisés, grande líder do povo hebreu, enquanto anunciava as Tábuas da Lei. A encenação bíblica não impediu que os mercados de ações desabassem mundo afora, trazendo uma realidade amarga para o valor do patrimônio das empresas e famílias americanas e crescente preocupação com uma provável recessão mundial.
Os economistas de plantão também criticaram o “criacionismo” econômico contido na estranha fórmula de cálculo do tarifaço de Trump. Os analistas de mercado já projetam vários efeitos colaterais das tarifas, como pressões inflacionárias nos EUA e redução do nível do emprego, apesar de tal desdobramento ser o oposto da intenção de Donald Trump. O presidente americano, falando como profeta, ganhou a disputa eleitoral com reiteradas promessas de mais investimentos industriais em solo americano e mais postos de trabalho. Mas as primeiras reações das empresas pós-tarifaço refletem desconfiança sobre a direção dos custos de produção nos EUA. O rompimento das cadeias de suprimentos de insumos, ou seu encarecimento, fatalmente trarão recuo do nível da produção interna. A popularidade e o apoio político a Trump correm perigo neste momento.
À primeira vista, as novas tarifas poderiam parecer improvisadas, ou então, destinadas apenas a punir certos países e regiões (como a Ásia) enquanto poupando outras, como a América Latina. Mas as novas tarifas foram determinadas com intuito meramente negocial e fiscal. Trump foi explícito na sua intenção de forçar os países exportadores mais superavitários – que estão sobretudo na Ásia – a sentar na mesa para oferecer vantagens comerciais e promover um reequilíbrio, ainda que parcial, dos déficits bilaterais americanos.
Enquanto isso, os países mais introvertidos, localizados na América Latina, inclusive o Brasil, ficarão “de molho”– com uma tarifa básica de 10% – que até nos favorece, na medida em que as cadeias produtivas multinacionais poderão cogitar de importar partes e peças por meio de filiais ou fornecedores da nossa região. Mas tudo ainda é muito especulativo. Haverá rodadas sucessivas de negociação com os asiáticos e europeus, de modo que a tarifa média dos EUA, para o conjunto de países-parceiros, não deverá passar dos 15%, com exceções em relação a certos bens, como petróleo, veículos, aço e alumínio, etanol e, claro, com sobretaxas às importações chinesas.
Por trás do tarifaço, porém, há uma velada preocupação do governo trumpista com o explosivo percurso da dívida federal americana, hoje beirando a casa dos 120% do PIB. Essa enorme montanha de dívida – em boa parte em poder dos chineses – da ordem de US$ 36 trilhões (sim, trilhões!) de dólares, representa o tendão de Aquiles da nação americana.
Sob qualquer medida, o esforço anual de pagar juros, quando calculado sobre essa montanha de débitos, representará uma fatia crescente do orçamento do governo americano nas próximas décadas. É um panorama insustentável, embora sobre ele pouco se comente. Isso coloca sob forte estresse todo o arcabouço fiscal do governo, limitando ações de bem-estar social e saúde, além de deter as ações militares em defesa do vasto território dos EUA e dos seus vastos interesses em outros continentes.
O valor do dólar como moeda de referência mundial está em risco. A grandeza americana, tão propalada por Trump, é o inverso da medalha: como gestor experiente, que já experimentou falências, ele conhece o cheiro e o gosto do perigo financeiro iminente. Trump tentará evitar uma ruína nacional. É o que ele, como bom marqueteiro, invoca como “fazer a América ser grande de novo”.
A dívida federal dos EUA é três vezes maior, em percentagem do PIB, do que em 1980 (era de 40% na era Reagan, contra 120% do PIB hoje). Reagan, em seu tempo, trouxe um empresário para apontar desperdícios no governo e tentou segurar gastos. Reagan também enfrentou o mesmo problema dos “déficits gêmeos”, a conjunção dos déficits externo e fiscal, ao mesmo tempo. Só que, desta vez, a vulnerabilidade financeira americana é três vezes maior em termos de dívida.
Cortes de gastos expressivos e aumentos substanciais de receita fiscal se tornam urgentes. Trump escolheu o resto do mundo para dividir essa conta. Uma parte do esforço fiscal (cerca de US$ 200 bilhões) viria da redução da conta da defesa global. Isso já está avisado aos europeus, aos israelenses e taiwaneses, além dos ucranianos. Outra parte do esforço virá de cortes nas despesas pelo departamento da Eficiência, leia-se Elon Musk (algo na faixa de US$ 300 bilhões por ano em economias). O restante do esforço há de vir das “províncias do Império”, ou seja dos parceiros comerciais.
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Os americanos importam cerca de US$ 3.2 trilhões anualmente. Ora, uma tarifa média de 15% sobre esse valor de importações representaria uma receita anual na faixa de US$ 500 bilhões. Deduzindo o montante hoje já arrecadado em tarifas, o ganho fiscal será algo como US$ 300 bilhões. Quando somados aos outros US$ 500 bilhões em cortes de despesas, o resultado de US$ 800 bilhões anuais em ajustes fiscais se aproximaria do trilhão de dólares anuais necessário para cobrir os juros da dívida pública americana.
Esta é a matemática prática por trás do anúncio bombástico de Trump. Politicamente, ele não está errado ao vender o peixe desse formidável ajuste fiscal colocando, primeiro, o resto do mundo (a parte relevante deste) como principal fonte pagadora das contas do país líder. O problema é que a história não para por aqui. A China, pretendente ambiciosa à liderança desse mundo fraturado, que hoje se sente abandonado pelos EUA, vai se apresentar como o suave porto seguro para abrigo das embarcações nos maus tempos trumpistas. Novos capítulos virão, e muito além do tarifaço da semana.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.