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SIGA NOAntes que Luís de Camões, em “Os Lusíadas”, pudesse celebrar que “Do mar temos corrido e navegado,/ Toda a parte do Antártico e Calisto, / Toda a costa Africana rodeado, / Diversos céus e terras temos visto”, os portugueses precisaram de preparação, indagação e imaginação sobre o que encontrariam nos diversos céus e terras para além-mar.
Segundo diversos relatos, o infante D. Henrique, impulsionador inicial das Grandes Navegações, perguntava insistentemente aos mouros de Ceuta acerca “das coisas do interior do sertão da terra” africana. Essa diligência lhe foi proveitosa, pois por meio deles viu como se conectavam diferentes regiões do continente Africano e onde começava a região que mouros e berberes conheciam como Guiné.
Pois bem, o tempo passou e a região da Guiné se dividiu em vários reinos redesenhados e renomeados pela colonização e, muito mais tarde, também pela descolonização. De todo modo, como atestado da força do nome, hoje ainda existem três países que carregam o nome Guiné na África Ocidental: a Guiné Equatorial, a Guiné-Bissau e a República da Guiné, também conhecida como Guiné-Conacri.
No meio da semana que passou, uma das três Guinés ficou em evidência por conta da mais recente volta da triste sina de tragédia política que acomete, de modos distintos, cada uma delas, além de muitos outros países da portentosa África, a qual foi e às vezes segue sendo tão maltratada e explorada por tanta gente diferente, tanto de lá mesmo quanto por muitos forasteiros.
Nesse caso específico, um dia antes do anúncio previsto dos resultados provisórios de uma disputada eleição presidencial na Guiné-Bissau, um grupo de oficiais das Forças Armadas declarou ter tomado o poder, detendo figuras políticas centrais, incluindo o presidente e candidato à reeleição, Umaro Sissoco Embaló, bem como responsáveis pelo processo eleitoral.
Em comunicado, os oficiais afirmaram ter constituído um “Alto Comando Militar para a Restauração da Ordem”, que assumiria o governo desse país historicamente propenso a golpes. Dado que as Forças Armadas bissau-guineenses são notoriamente fragmentadas, permanece incerto se os golpistas contam com o apoio dos principais comandantes e de suas respetivas tropas.
O pequeno país da África Ocidental, com cerca de 2 milhões de habitantes e refém de uma participação exagerada dos militares na política, tem sido, há anos, um corredor estratégico para redes nacionais e estrangeiras de narcotráfico que utilizam o território como escala para o mercado ilícito europeu.
A já protelada votação realizada no domingo passado, tinha o presidente em exercício – agora possivelmente afastado pelo golpe e já refugiado no vizinho Senegal – enfrentando um concorrente bastante competitivo. Some-se a isso, o fato de que nas últimas três décadas, nenhum presidente conseguiu, enquanto estava no cargo, obter um segundo mandato consecutivo.
Numa das histórias de pior desarranjo institucional que ocorre nas últimas décadas mundo afora, é também fato de que desde 1974, ano em que conquistou a independência de Portugal, a Guiné-Bissau já foi abalada por pelo menos nove golpes e tentativas de golpe.
Alguns observadores destacam ainda que Umaro Embaló recorre frequentemente à produção de crises políticas como pretexto para medidas repressivas. Ademais, durante o seu governo, relatos apontam para uma intensificação do narcotráfico, fenômeno que reforça a vulnerabilidade institucional do país.
O general anunciado como novo líder da Guiné-Bissau era, até o golpe, chefe da própria Guarda Presidencial do presidente Embaló, o que sugere, no mínimo, algum grau de continuidade entre os segmentos das Forças Armadas que tomaram o poder e o núcleo presidencial. Quem está “dentro” e quem está “fora” desse arranjo ainda não está claro, mas o principal candidato a disputar a presidência contra Umaro Embaló afirma que se trata de uma forma de autogolpe.
De fato, a não ser que tenha ocorrido uma grande traição sem um maior ato de violência contra o traído, Umaro Embaló, que também é general do Exército, continua a ter vários de seus homens de confiança à frente do poder em Bissau. Aparentemente, quando Embaló soube que perdera as eleições, viu nessa manobra a chance de manter poder por vias diversas, através do grupo que governava com ele.
A Guiné-Bissau é membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), sediada em Lisboa. O imbróglio deve arrastar a CPLP, uma vez que a presidência rotativa dessa organização internacional dos países falantes da língua de Camões, encontra-se justamente com a Guiné-Bissau, a princípio de 2025 até 2027.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
