
Canadá: o aviso do aliado leal
A eleição no Canadá desnuda a fórmula emocional das campanhas feitas para esconder quem manda no governo
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Não é fácil realizar boas ações preocupado com a própria sobrevivência ou sem condições pessoais para isso. Muitos que poderiam praticar o bem refugiam-se no mundo das discussões descabidas. Governos que entopem o país de ordens executivas e falatórios incessantes são viciados na vida alheia — tiram a energia dos fracos e a força dos fortes. Além disso, é impossível considerar virtude o desejo de fazer o bem às custas de quem sofrerá a perda desse bem.
Há quem não consiga ser ou manter-se bom depois que ocupa altos cargos no estado. Desde tempos vivemos a mesma encruzilhada para viver: seria o melhor caminho a partir dos princípios ou em direção aos princípios? O poder mal adquirido faz tanto mal quanto os bens mal adquiridos.
O estado de incontinência da política mundial, onde governantes se especializaram em botar a culpa nos outros, pode, às vezes, ter um contraponto nos cidadãos, que pelo sistema eleitoral, revelam que não perderam sua medida diante da adversidade.
É o que parece ter feito o eleitor canadense. Inventaram, como seu 24º primeiro-ministro, alguém que se candidatou pela primeira vez aos 60 anos. Mark Carney, um financista agora dedicado ao investimento político, ficou conhecido por ter presidido os bancos centrais, tanto de seu Canadá natal quanto do Reino Unido. Tendo sido também alto executivo do Goldman Sachs e da Brookfield – uma gestora de fundos canadense – que nasceu em São Paulo em 1899 e, hoje, tem R$ 200 bilhões em ativos sob gestão no Brasil e mais de US$ 1 trilhão em ativos sob gestão mundo afora.
Carney é um liberal, centrista, não populista e internacionalista, eleito para enfrentar a ameaça feita pelo 47º presidente dos Estados Unidos, de anexar o Canadá aos EUA, tornando-o seu “51º estado”.
A nomeação de Mark Carney, um estrangeiro, ao BC da Inglaterra foi um verdadeiro auto de fé britânico e crença liberal em sua máxima essência. Numa city londrina sob duros questionamentos, e em um país mergulhado em crise econômica originada pela desordem financeira, a autoridade britânica fincou pé na ideia de que o remédio para os males do liberalismo seria… mais liberalismo.
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Todavia, na sua recente eleição política, tudo foi mais um confronto de simplificações midiáticas, fortalecendo o sistema binário de decisão, ideal para preservar a má política. A vitória esmagadora que se anunciava do Partido Conservador 100 dias atrás, antes da posse de Trump, virou triunfo apertado do Partido Liberal.
Simplificações à parte, quem conhece os ocultos caminhos da vida dos governos sabe que injustiças tributárias e retaliações tarifárias nada possuem de ideologia. Impostos, taxas, tributos são a razão de ser das receitas federais pelo mundo afora, onde o estado, com avareza, é sempre deficiente no dar e excessivo no tomar.
Habilidoso em política virou quem alcança seus objetivos, mesmo que falsos. No poder, leis são para os outros. Justiça varia, e muitos prosperam sem mérito. A tristeza é dos que não romperam os limites civilizatórios no mundo político e econômico. A crise é dos que tudo podem, no público e no privado. A lei é feita por quem não a cumpre. O individualismo exacerbado confunde liberdade com abandono de valores e vínculos. A eleição de um banqueiro no Canadá, talvez, revele uma paixão secreta do eleitor bancarizado e endividado — ou apenas mais uma mania da política de aplicativo e seu eleitor em modo cashback.
Reagir a governos inconfiáveis exige confiabilidade de outra natureza. Mantidas as astúcias salariais e negociais da elite do poder estatal, aumentar a arrecadação, destruir o comércio e negar a alma das pessoas não trará melhora. A concentração de riqueza, a produtividade lenta, os lobbies que impõem barreiras comerciais e o custo de vida em alta compõem o cotidiano de um mundo renegado do liberalismo, da social-democracia e das políticas compensatórias. Governos, de direita ou esquerda, cujos gastos não correspondam aos recursos, contribuem para a permanência das disparidades sociais.
A eleição no Canadá desnuda a fórmula emocional das campanhas feitas para esconder quem manda no governo. Agradar inimigos e desprezar aliados só produz mandato ruim. Um banqueiro, em nada novato, pediu ao povo um certificado para conferir à gestão bancária o símbolo de confiabilidade política. Com a vitória, deu o recado a quem fez o vizinho inconfiável. Quem sabe equilibre para os canadenses uma perda que ainda não houve, em um jogo que Carney hoje venceu, mas quem pode dizer amanhã que Trump perdeu?
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.