
Sofrendo o bem no liberalismo
Embora apresente variações ao longo do tempo e em termos de atitudes regionais e bilaterais, o comércio global desenvolve-se sob a o liberalismo econômico
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Nevoeiro ou turbilhão ameaçam o mercado mundial. Qualquer um pode se exceder no gasto por doença, mau gosto ou ostentação, mas receber de onde não convém é tentar fazer o bem a si mesmo levando o outro a sofrer do bem que já possui. A economia sempre gostou do prazer da riqueza e nunca imaginou as dores que é a pobreza. Imposto, taxa e tarifa é a glória do Estado que gosta de tomar sem dar. Cada um por si, era assim. Agora é um por todos, impondo e sofrendo as dores do liberalismo agonizante.
Estaria o mundo caminhando em direção a um retorno ao mercantilismo? Ouve-se nas capitais europeias e em respeitados centros de pesquisa ao redor do mundo que, sim, estaríamos assistindo ao ressurgimento de práticas mercantilistas decididas por leis mercantilistas.
Por mais que períodos históricos não se repitam exatamente, aspectos controversos do passado podem, sim, ressurgir como força orientadora para líderes confusos quanto aos objetivos que realmente perseguem. Em um mundo interdependente, as consequências socioeconômicas de decisões geopolíticas unilaterais tomadas por potências são motivo de grande preocupação. Ademais, se dinâmicas de retaliação e visões de “soma zero” saem do controle, os ganhos sociais líquidos tendem a desaparecer. No passado, foi justamente pela insustentabilidade dessas abordagens primeiro o meu – baseadas em políticas do tipo “empobreça seu vizinho” – que o mercantilismo acabou sendo abandonado.
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Embora apresente variações ao longo do tempo e em termos de atitudes regionais e bilaterais, a atual organização do comércio global desenvolve-se sob a égide do “liberalismo econômico”. Ainda que ocorram variações de liberalismo, esse é o sistema dominante do comércio global desde o século 19.
É do sueco Eli Heckscher a grande obra de definição e análise dos meandros do mercantilismo. Talvez as pessoas evitem o extenso estudo de Heckscher em parte porque sua visão vai além da dicotomia simplista entre mercantilismo e liberalismo. Sua concepção geral de mercantilismo não o reduz simplesmente à negação do liberalismo. Ele criticava o esquematismo e as generalizações apressadas, descrevendo o mercantilismo como um fenômeno muito mais complexo, que, inclusive, incorporava certos valores desejáveis.
Recentemente, desde o momento em que a maior economia do mundo intensificou sua política de agressivas tarifas comerciais, vozes dos mais variados espectros ideológicos passaram a defender com fervor o livre comércio. Curiosamente, não é apenas a direita minimamente coerente – que reconhece que o protecionismo contradiz os princípios fundamentais do liberalismo de mercado – que tem rejeitado esse recrudescimento tarifário. A esquerda mundo afora também optou por não endossar as tarifas como uma forma legítima de reafirmação do papel do Estado na economia.
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Ao adotar essa postura, setores progressistas deixam transparecer que, na verdade, também reconhecem os benefícios concretos oriundos da competição em mercados abertos – seja em termos de acesso a bens mais baratos, estímulo à inovação ou dinamismo produtivo. Ou seja, mesmo aqueles que defendem a legítima participação do Estado na economia não querem ver o “bebê do liberalismo” ser jogado fora junto com as águas de seus excessos.
À medida que o neoliberalismo se consolidou como política dominante entre os principais partidos de direita e de esquerda nos anos 1990 e 2000, abriu-se espaço para o surgimento de uma onda populista assimétrica que passou a contestar esse consenso. Curiosamente, essa contestação partiu com maior força e sucesso da própria direita, ou campo conservador. E foi longe ao defender sobretaxar até países africanos.
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O paradoxo em que vivemos atinge seu ápice quando até mesmo o Partido Comunista Chinês, por meio de sua embaixada em Washington, resolveu citar ninguém menos que Ronald Reagan – ícone do conservadorismo estadunidense – para criticar o protecionismo encampado pelo atual Partido Republicano. Para além de merecer cumprimentos pelo bom-humor, é um contorcionismo ideológico ver os comunistas recorrem a Reagan para defender o livre comércio que tanto os beneficia. De todo modo, assim como o livro de Heckscher é carregado de nuances, o “livre” comércio dos chineses é aquele atrelado a um extenso rol de políticas industriais em que as “razões de Estado” permanecem sempre bem acima das preferências individuais. Ou seja, liberalismo e mercantilismo é o nome do Socialismo chinês.
Assim, se há alguma lógica mais bem fundamentada na Washington atual, seria a de que os EUA vem sendo moldado em grande medida por Pequim.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.