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Paulo Delgado
Paulo Delgado

Mundo, carnaval e Quaresma

A transição do carnaval a Quaresma talvez seja o momento do ano que práticas de êxtase e reflexão ficam mais próximas para os que aceitam esses dois símbolos

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A oscilação histórica entre festividade e contemplação reflete os desafios enfrentados por nossa sociedade atualmente. Uma sociedade tão moderna e avançada, mas incapaz de resolver problemas básicos que ferem nossa própria noção de humanidade. O mundo contemporâneo vive uma luta constante entre a euforia da festa e a necessidade de reflexão sobre as crises humanitárias, ambientais e geopolíticas. Avanços técnicos e recuos comportamentais são hoje a vida humana.


Essa dualidade entre celebração e introspecção também se reflete na vida cotidiana. A busca por um equilíbrio entre esses dois estados de espírito torna-se cada vez mais desafiadora em uma sociedade que valoriza tanto o hedonismo quanto a consciência social. Sociedade global de consumo, encalacrada entre exigências mil e os imperativos de uma consciência. Nada mais está no centro da vida humana, nem o amor pelos pais, a honra dos países ou a compreensão do que seja felicidade. O afeto fácil, a esperança perdida e a alegria enganadora dominam tudo.


Fato histórico e alegórico que é, tal tensão entre a celebração festiva e a reflexão solene foi também capturada na arte, notavelmente por Pieter Bruegel, o Velho, em seu quadro ‘O combate entre o carnaval e a Quaresma’. O pintor flamengo, viveu no período em que a disputa entre católicos e protestantes se misturou com a luta pela independência das sete províncias do norte dos Países Baixos. Foi uma época ao mesmo tempo sangrenta e efervescente naquela região.


Os anos 1500, em que Bruegel viveu, foram marcados pela aparição e expansão do Protestantismo, bem como pela aceleração das Grandes Navegações. Bruegel nasceu no que hoje é a Holanda e vivenciou as batalhas em torno da independência de seu país. Ao conquistar sua independência, a cultura holandesa passou por um franco renascimento, entrando em um ciclo virtuoso conhecido como a Era de Ouro Holandesa.


Na academia, quem melhor retratou esse período dourado foi o historiador inglês Simon Schama em seu livro ‘O constrangimento da riqueza’ (The Embarrassment of Riches), de 1987. O título é perfeito para capturar a dualidade vivida, com o conflito travado a emergente riqueza holandesa, que praticava o consumo ostensivo ao mesmo tempo em que buscava conciliar as restrições da filosofia calvinista e o sentimento de vergonha.


Essa tensão entre progresso e crise, momentos de exaltação e períodos de introspecção, não ficou restrita ao passado. Tal dicotomia são duas faces da mesma moeda, manifesta-se em diversas regiões do mundo, refletindo as complexidades sociais, econômicas e políticas contemporâneas. Nos Estados Unidos, a indústria do entretenimento atinge seu auge com eventos como o Super Bowl, o Oscar, os Playoffs da NBA, ou as multidões de jovens que seguem Taylor Swift ou Kanye West, movimentando bilhões de dólares e capturando a atenção global com bobagens de prestígio. No entanto, simultaneamente, os EUA enfrentam tristezas profundas, como drogas e uma desigualdade social crescente cujo povo a tudo reage de forma cada vez mais constrangedora.


Na Ásia, essa dualidade se expressa de forma emblemática na China. O crescimento econômico acelerado e os avanços tecnológicos transformaram o país em uma potência global, refletidos em megaprojetos como a Nova Rota da Seda e todos os megaeventos ali organizados a partir dos Jogos Olímpicos de Pequim. No entanto, questões como o controle estatal sobre a liberdade de expressão, a repressão em Hong Kong, as ameaças à Taiwan, bem como a situação de algumas minorias, colocam em evidência a necessidade de um exame crítico sobre os custos de uma versão hegemônica de progresso. A tensão entre euforia e censura evidencia os dilemas de um modelo que busca expansão econômica rápida calcada num amplo controle político.


No Oriente Médio, a grandiosidade e o poder financeiro do país, nada influencia nos debates sobre direitos humanos e condições de trabalho precárias de imigrantes.


Na Europa, um parque temático que pode ser destruído pela aliança Trump-Putin, vê a dualidade entre festa e introspecção como romance de Proust e custa a se armar para defender o único lugar onde a civilização ocidental é respeitada.


O embate entre euforia e reflexão, entre êxtase e culpa, não é um fenômeno novo. Assim como na pintura de Bruegel, vivemos um tempo em que os espaços de festa coexistem com os espaços de privações, e o desafio está em compreender essa dualidade e buscar se salvar num mundo que não sabe mais se defender.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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