
Trump, o atirador de pedras
A América do Sul, e em particular o Brasil, ocupa posição estratégica para empresas norte-americanas, tanto no comércio quanto na rentabilidade de investimentos
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Um dos artifícios mais utilizados da caixa de ferramentas da cabeça de Donald Trump é insuflar as qualidades do lado que defende, enquanto desdenha das qualidades da outra ponta da barganha. Para ele, tudo é uma barganha, um negócio de acordo com seus interesses. Para quem pensa assim, tudo na vida são transações – quem ama só dinheiro não se satisfaz com mais dinheiro – em que o “esperto” faz o que for preciso para ganhar mais do tolo. Por isso, sair da sua boca que seja lá quem for “precisa mais de nós do que nós deles” não é de se estranhar. Surpreendente seria ouvi-lo discorrer sobre a importância de seja lá quem for para além do espelho em que se mira.
A estratégia de desdenhar das qualidades e relevância daqueles com quem se negocia muitas vezes surte efeito em relações de poder assimétricas. Afinal, quando os atributos totais de poder de cada parte são explícitos, ou são parte do imaginário popular, o menos poderoso se intimida.
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Sendo assim, essa forma de “abuso de poder”, que permeia inclusive a relação entre países, beneficia, numa perspectiva transacional, aqueles cujas sobras de poder são maiores. Todavia, isso só ocorre porque, muitas vezes, a parte desdenhada não tem uma atitude de independência, nem se dedica a calcular quem depende de quem em cada situação concreta.
Por exemplo, ainda que seja correto enfatizar que as relações de comércio e investimento internacional representam oportunidades de ganhos mútuos, os números indicam que os benefícios obtidos pelos EUA em suas relações comerciais e de investimento com a América do Sul – especialmente com o Brasil – superam o que oferecem em contrapartida.
A América do Sul, e em particular o Brasil, ocupa uma posição estratégica para as empresas norte-americanas, tanto no comércio quanto na rentabilidade dos investimentos, devido a uma combinação de fatores econômicos, geopolíticos e de recursos naturais.
O Brasil é o maior parceiro comercial dos Estados Unidos na América do Sul e um dos principais mercados de atuação de suas multinacionais em todo o mundo. Os dois países mantêm relações como estados soberanos há duzentos anos e, ao longo desse período, estabeleceram um fluxo consistente de importações e exportações que reforça a interdependência entre as duas economias.
Nesse contexto, o desdém em relação à América do Sul, como estratégia de países centrais, se apoia no artifício do divisionismo, uma prática que fomenta rivalidades e enfraquece a região como um bloco coeso. Essa armadilha geopolítica, infelizmente, continua a encontrar terreno fértil, como no caso da Argentina, que mais uma vez corre o risco de engolir essa isca até as entranhas ao ameaçar se desvencilhar do Mercosul por razões fúteis e com base em expectativas vãs.
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É preciso, portanto, repensar estratégias regionais que promovam soberania econômica e inovação tecnológica. Um passo simples, mas de impacto relevante, seria no setor de transação de dados de comunicação.
O Brasil tem plenas condições de criar um serviço nacional de comunicações nos moldes do WhatsApp, seja por meio de incentivos governamentais a empresas privadas ou pela determinação a organizações públicas já existentes, como o Serpro ou a Dataprev. Nesse segundo caso, inclusive, a Dataprev deveria ser renomeada como Databras ou algo assim, para sinalizar a ampliação de seu escopo para abarcar múltiplas soluções tecnológicas de transação de dados.
Assim como o pix revolucionou as transações financeiras ao oferecer um serviço instantâneo, gratuito e acessível, uma plataforma nacional de transação de dados de comunicação imediata asseguraria uma necessária soberania tecnológica na área. Isso reduziria a dependência de serviços estrangeiros envolvidos em projetos de poder que confrontam com nossa lei. Isso também garantiria maior segurança para os dados de usuários brasileiros, sejam pessoas físicas ou empresas, além é claro de possibilitar o desenvolvimento local dentro da nova economia dos dados que tanto enriquece as big techs.
A criação de um “WhatsApp brasileiro” é essencial para prevenir os problemas associados à dependência de plataformas estrangeiras, como a possibilidade de interrupções, violações de privacidade e de dispositivos legais, além de uma governança subordinada a outros países. Hoje, milhões de brasileiros e empresas dependem do WhatsApp para organizar suas rotinas e conduzir negócios, e a ausência ou limitação desse serviço seria altamente prejudicial. É, portanto, uma questão de segurança nacional.
Há, também, o tempo de juntar pedras e evitar o tempo de ficar longe para o abraço. Ideias do tempo de Salomão podem ensinar muito ao intempestivo Trump.