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Luiz Carlos Azedo
ENTRE LINHAS

Nova York, da diáspora judaica à eleição de um prefeito muçulmano

Mamdani representa uma síntese do mundo globalizado – africano, asiático, muçulmano e nova-iorquino –, em meio à polarização alimentada por Trump

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Mais do que qualquer outra metrópole ocidental, Nova York é a mais cosmopolita cidade do mundo, graças a sucessivas ondas migratórias que, a cada geração, redefiniram seu perfil econômico, social e cultural. Essa vocação cosmopolita remonta ao episódio quase lendário de 1654, quando 23 judeus – expulsos do Recife após a derrota holandesa para os portugueses – desembarcaram na então colônia de Nova Amsterdã, que deu origem à cidade.

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Vindos de Pernambuco a bordo do navio Valk, depois de escaparem de piratas, de prisões e da Inquisição, encontraram abrigo precário na cidade governada pelo calvinista Peter Stuyvesant. Mesmo assim, fundaram a primeira comunidade judaica estável das Américas, gênese do pluralismo que seria o germe da identidade nova-iorquina moderna: a convivência tensa, mas fértil, de culturas, crenças e etnias em permanente metamorfose.


Nosso elo perdido com Nova York é a presença judaica em Pernambuco sob o domínio de Maurício de Nassau, que não foi apenas um episódio colonial. Foi antecipação da modernidade cosmopolita que, dois séculos depois, faria de Nova York a grande metrópole global. Nassau enxergava na tolerância religiosa uma vantagem política e econômica. Recife dos anos 1630 e 1640 era uma cidade aberta, onde se falava holandês, português, hebraico e tupi; onde sinagogas e igrejas coexistiam e o comércio internacional florescia.


Quando a ocupação holandesa terminou e a Inquisição voltou com força, os judeus do Recife foram forçados a partir. Essa diáspora atlântica – dos engenhos de açúcar ao porto holandês e daí à América do Norte, mais do que o prólogo de uma saga religiosa. É o início da ideia de cidade como refúgio e reinvenção. Ao se estabelecerem em Nova Amsterdã, os exilados de Pernambuco introduziram no Novo Mundo o princípio da pluralidade urbana: a noção de que a cidade pode ser espaço de encontro, e não de exclusão.


Marshall Berman, em “Tudo que é sólido desmancha no ar” e, principalmente, “Um século em Nova York”, descreveu essa vocação universal da cidade. Para ele, a cidade é o palco das contradições da modernidade, entre miséria e esplendor, e tradição e vanguarda. Berman via nas ruas, especialmente na Times Square, uma espécie de laboratório da experiência humana moderna, “porque nela se cruzam os sonhos e os destroços do progresso”.


O herói de Berman é o homem anônimo que se dissolve na multidão, mas encontra nela sua identidade. O imigrante, o artista, o trabalhador, o sem-teto e o executivo coexistem como expressões de um mesmo drama: o de construir um sentido de existência num espaço em constante mutação. Multiétnica, pluralista e culturalmente aberta, Nova York do século 21 é o produto direto da mestiçagem espiritual e social. Não à toa influencia o comportamento do Ocidente.

Cidade aberta

A eleição de Zohran Mamdani como prefeito de Nova York em 2025 é a continuidade dessa herança cosmopolita, num momento em que o governo Trump fecha a porta para o “sonho americano” e persegue os imigrantes. Filho de indianos nascido em Uganda e criado no Queens, Mamdani representa uma síntese do mundo globalizado – africano, asiático, muçulmano e nova-iorquino. Seu triunfo eleitoral, em meio à polarização alimentada por Trump, confirma que Nova York permanece como sendo um farol político da sociedade norte-americana: uma cidade capaz de transformar a diferença em força.


Os judeus que chegaram do Recife em 1654 eram exilados de uma fé perseguida. O novo prefeito é um muçulmano num país onde o islamismo ainda enfrenta estigmas. Ambos encontraram em Nova York um espaço de resistência e reinvenção. Mamdani expressa o amadurecimento dessa luta: a passagem do “direito de ser tolerado” para o “direito de governar”.


Como Berman descreveu, Nova York é uma arena de conflitos e reconciliações. Mamdani emerge desse caldeirão urbano como expressão da capacidade de acolher, contradizer e transformar. Ele fala a linguagem das redes sociais e das ruas, mistura ativismo político com performance pública, e reinterpreta o ideal democrático à luz das novas identidades.


Berman via nas avenidas de Nova York os palcos de cidadania. O verdadeiro sujeito da eleição de Zohran Mamdani, cuja campanha foi iniciada com uma caminhada performática de ponta a ponta de Manhattan. Eis um político que se funde à cidade e faz da rua o seu verdadeiro habitat, do Harlem cultural ao Occupy Wall Street.


Transporte gratuito, moradia acessível e tributação progressiva, as propostas de Mandani o social-democrata nova-iorquino, o bem-estar coletivo é sinônimo da vitalidade das ruas. Num momento em que Trump e seus seguidores reacendem discursos nacionalistas e xenófobos, a vitória de um muçulmano socialista na capital financeira do mundo é um gesto civilizatório de uma cidade de vanguarda da pós-modernidade.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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