Jéssica Balbino
Jéssica Balbino
Jornalista e curadora de eventos literários no Brasil, escreve sobre corpos dissidentes. Criadora do Margens, projeto que difunde conteúdo sobre mulheres periféricas na escrita.
ENFRENTAR OU CRIAR?

Censura, racismo e cancelamentos em festivais literários

Enquanto festas hegemônicas se rendem ao autoritarismo, movimentos coletivos e independentes criam novos espaços de resistência, encontro e leitura

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Como se proteger da censura? Ando às voltas com essa pergunta e, para além do aquilombamento, da coletividade e da radicalidade, não consigo elaborar muitas outras respostas. Explico: nesta semana, o caso da vez no universo da literatura brasileira foi a censura sofrida pela escritora, jornalista e feminista Milly Lacombe no Festival Literomusical de São José dos Campos (FLIM). Uma fala sua, tirada de contexto em um podcast, foi repercutida de modo calculado para causar mal-estar entre grupos conservadores. O resultado, como a própria Milly escreveu, é que perdemos todos.

O medo que se coloca entre uma presença e a possibilidade de violar a integridade física de alguém é violência. Na cidade, o que se viu foi isso: o esperneio da extrema direita, na figura do prefeito Anderson Farias (PSD), diante do pensamento crítico e do desvelamento das violências praticadas em nome de Deus, pátria e família.

As notícias sobre o tema não ajudam. Em uma delas, se diz que a FLIM gasta cerca de R$ 300 mil de recursos públicos para a realização. O montante é parco quando se pensa em organização de eventos, minha gente. Principalmente do tamanho que estamos falando, com estrutura, música, acessibilidade, etc. Ainda sim, é dever do estado garantir isso e de forma permanente. Um evento literário anual não cumpre, nem de longe, a função que se idealiza para o livro e leitura e a título de formar um país leitor.

No último ano, foram mais de 300 convidados no evento. É de se pensar que o investimento público é insuficiente para a realização do evento. Ainda sim, há quem - neste caso, o prefeito - jogue contra. Veja bem, a própria administração pública é desfavorável ao incentivo ao livro e leitura. Anunciar que a festa ocorrerá em outra data só piora, porque não reconhece a gravidade do evento, o fato de que outros convidados se retiraram em solidariedade à Milly e que, montar outra grade, contratar outros curadores, etc, envolve ainda mais custos do poder público. E, convenhamos, não é exatamente com isso que a extrema direita se preocupa, não é mesmo?

Me dá arrepios ler coisas como: “bem-feito, agora o dinheiro público será bem investido”, como se cultura, literatura e pensamento não fossem não só importantes, como urgentes. Censura é algo extremamente violento. Escrevo o óbvio: não dá para tolerar.

Milly é uma mulher lésbica, jornalista, feminista. Inspira tantas pessoas – eu, inclusive – com posicionamentos firmes, que nos obrigam a pensar sobre como resistir a tanta violência.

Diante da censura, autores, curadoras e mediadores se retiraram do evento em solidariedade. A prefeitura respondeu com uma nota protocolar, comunicando o “adiamento” da festa, sem data para retorno. Do outro lado, parte dos apoiadores conservadores comemoraram. E aí me pergunto: falta quanto para chegarem às fogueiras de livros?

Não é de agora. Em agosto, a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei) sofreu censura em São Paulo e, em 48 horas, se reinventou em novos espaços. A festa foi linda, mas o desgaste é real.

Se existe um lado bom – e eu tento acreditar que sim –, é que cancelamentos e censuras nos empurram com mais força para a ação: organizamos, coletivizamos, ocupamos. E seguimos.

Livro Livre: resistência em forma de feira

Em São José dos Campos, leitores vão, sim, celebrar a literatura. No próximo fim de semana, na mesma data em que aconteceria a FLIM, a Livraria Mantiqueira organiza a primeira edição da Livro Livre: A Feira de Todos os Leitores.

Serão dois dias (20 e 21, das 9h às 18h), com cerca de cinco mil livros para todas as idades, descontos de até 20% e livros infantis a partir de dez reais. O evento acontece na futura sede da livraria, na rua Paulo Becker, 180, Vila Adyana, e inclui programação cultural construída em parceria com editoras de todo o país.

“Temos um carinho especial pela FLIM, mas não podemos compactuar com censura”, afirmou Roberto Guimarães, sócio da livraria. “Para nós, os livros são portais para outros mundos e para o debate de ideias. Diante da situação, decidimos realizar uma feira para celebrar a potência transformadora da leitura.”

A Mantiqueira, referência na Serra e no Vale do Paraíba desde 2018, inaugura oficialmente sua filial em São José dos Campos em novembro.

Ocupa FLIM: quando a cidade se levanta

No mesmo gesto de resistência, mas com outro nome, surge a Ocupa FLIM: um movimento espontâneo, criado pela força de artistas, educadores, trabalhadores e pequenos comerciantes.

“Somos pessoas comuns, criadores e fazedores culturais. Cada um constrói este espaço vivo de encontro, criação e resistência”, afirma o coletivo.

A programação começa nesta sexta (19), às 18h, e traz apresentações de Bloco Capivara Neon, So fia da Vida, Pedra Vermelha, Diego Miranda, Bah Miirad, Meire D’Origem e Sol Maior.

Outros silêncios

Mas é impossível não pensar: por que nem todo caso gera a mesma comoção? Quando o alvo é censura política, mobilizamos. Mas quando é racismo ou gordofobia, muitas vezes, silenciamos.

Em julho, a autora Lilia Guerra sofreu racismo na Flip. Nenhuma nota oficial. Poucos posicionamentos. Muitos já estavam preocupados com a próxima curadoria, ansiosos por convites.

Em abril, no Flipoços, o escritor Wesley Barbosa também foi vítima de racismo. No mesmo evento, eu mesma sofri um episódio de gordofobia. Houve algum movimento coletivo? Não.

Isso me faz pensar: acreditamos que não acontecerá conosco? Habitamos corpos mais palatáveis? Ou simplesmente escolhemos não nos importar?

Caminhos possíveis

Recentemente estive na Feira do Livro Periférico no Sesc Consolação, em São Paulo, organizada pela Câmara Periférica do Livro. Saí fortalecida por ver literatura de altíssima qualidade sendo feita e circulada pelas próprias mãos.

Hoje começa também a Felizs – Festa Literária da Zona Sul, organizada pelo Sarau do Binho, onde estudantes recebem moeda literária para garantir seus livros. Ali, sim, estão os encontros que me interessam.

Na III Feira do Livro Periférico foram 30 editoras, mais de 45 mil reais em livros vendidos em poucos dias, e uma programação plural. É nesses espaços que quero estar: os que acolhem, não os que repelem; os que se financiam coletivamente, não os que usam verba pública para reforçar exclusões.

Fato é: não dá mais para compactuar. Vida longa às feiras e festas que resistem: Livro Livre, Ocupa FLIM, Flipei, Feira do Livro Periférico, Felizs e tantas outras. É nelas que seguimos criando mundos possíveis.

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