
Vamos falar mais e mais das Cabulosas
Jogo a jogo, uma festa cada vez mais linda tem acontecido nas arquibancadas do Gregorão e do Castor Cifuentes
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Todo “ranca unha” era antecedido dos dois craques da turma no meio do campo. Mãos para trás e “para ou ímpar”. O vencedor tinha o direito de começar a escolha dos jogadores do seu time em meio à quantidade excessiva de moleques. Dos melhores até chegar aos piores, que tinham como vaga o “pegar no gol”.
O meu lugar, invariavelmente, ficava entre o último a ser escolhido para a linha, o gol ou o “time de fora”, aquele formado pelos não-escolhidos e que deveria esperar a segunda partida para tentar jogar ao menos um pouquinho.
Nas férias de inverno de 1988, em Itaúna, cidade dos meus avós, não foi diferente. Sentado na beirada do campo do Tropical Tênis Clube, obviamente já sabendo que o meu destino era o “time de fora”, vi uma garota magra, alta, de cabelos longos e loiros, em meio aos meninos. Foi a primeira escolhida para compor um dos escretes titulares.
Minha cabeça e meu peito ficaram confusos: “como assim?” Inveja, surpresa, encanto e preconceito (quando ainda nem idade tinha para entender o que isso significava). Mas não conseguia tirar os olhos de Raquel, a única menina entre os 22 jogadores a disputar a primeira partida.
Na zaga adversária estava um dos dois craques que havia disputado o “par ou ímpar”, meu xará, Gustavo Dornas. Mesmo mais forte que os demais, o xerifão não conseguia impedir os avanços do time oponente, que tinha Raquel no ataque.
Por suas madeixas e pela velocidade com que rompia a linha defensiva adversária, ela fazia lembrar Natal, o Diabo Loiro, ídolo cruzeirense da Academia Celeste de 1966.
Não demorou para estufar as redes. “A menina fez o gol!”, as vozes, em tom de espanto preconceituoso, ressoavam por todos os cantos do campinho de grama, enquanto os companheiros de time Raquel esboçavam um cumprimento meio sem graça com a artilheira da peleja.
As férias de 1988 terminaram e nunca mais tive notícias de Raquel. Mas desde então, até hoje, todas as vezes em que leio ou assisto uma reportagem sobre Marta, a maior jogadora de futebol do planeta, a imagem daquele gol encantado da menina em Itaúna me vem à mente.
Quase 40 anos depois, ainda me pergunto se o encanto em relação ao futebol feminino já conseguiu superar a quantidade de preconceito de gênero enraizado que a nossa sociedade carrega.
Certamente, não. Para essa necessária e urgente reversão, infelizmente, ainda existe uma longa caminhada a ser percorrida. Por outro lado, muitas pessoas e instituições têm ajudado para que nunca mais se volte ao tempo da quase pré-história, onde uma garota, para mostrar o seu talento, precisava estar entre 21 homens.
Exatamente por vestir a camisa do futebol feminino, o Cruzeiro é uma dessas instituições, e, por isso, vêm nos enchendo de orgulho.
Ao investir nas Cabulosas, nosso escrete de futebol feminino, a SAF Cruzeiro, demonstra que, mesmo no esporte cada vez mais mercantilizado, ainda se tem espaço para ações afirmativas de reparação histórica.
Alinhada a isso, vem a Nação Azul. Não na sua totalidade, mas ao menos a ala que honra a história de luta contra preconceitos que marcou a fundação do Palestra/Cruzeiro. Essa, sim, já abraçou definitivamente as Cabulosas de uma maneira encantadora.
Jogo a jogo, uma festa cada vez mais linda tem acontecido nas arquibancadas do Gregorão e do Castor Cifuentes. Bandeiras do Comando Rasta, da Resistência Azul Popular (RAP), do Movimento Revolucionário Azul e da China Azul já fazem parte do multicolorido alegre do futebol feminino celeste.
Somos líderes do Campeonato Brasileiro e não vamos parar por aí. Seremos campeãs e não se esqueça: quanto mais apoiar e investir no futebol feminino, mais o Cruzeiro será protagonista para que novas Martas e Raquéis possam surgir no Brasil para encantar o mundo.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.