
Um Cruzeiro sem memória é um Cruzeiro sem futuro
Que amanhã, o mesmo "virar de página" comece a ser escrito – com spray azul – também na Copa Sul-americana
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Quando o avião pousou no Aeroporto Arturo Merino Benítez, o sol já havia vencido a muralha da Cordilheira dos Andes para ensolarar Santiago, capital do Chile. Dezenas de cruzeirenses desceram do avião. Délio era um deles, com a mochila azul um pouco mais vazia do que de costume.
Acompanhado do filho Thales, seguiu rumo ao bairro Providencia, ladeando o Mapocho, rio que corta Santiago de leste a oeste, outrora sagrado para os Incas. Pai e filho entraram no hostel Ventana Sur, com a mesma ansiedade de 1994, quando Délio levou Thales – com 7 anos de idade – a primeira vez ao Mineirão. O menino entrou no gramado de mãozinhas dadas com Dida e Ronaldo.
Deitados no beliche, os dois curtiram uma hora de descanso. Logo mais, o Cruzeiro enfrentaria o Universidad de Chile. Peleja válida pela terceira rodada da fase de grupos da Libertadores de 2018. O momento era de tensão, pois, até ali, uma derrota para o Racing e um empate contra o Vasco.
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Nervosismo. Délio sentiu falta de algo quando apalpou os pertences. Esquecera alguma coisa muito importante; só não sabia o que.
O manto sagrado não era. Ele vestia um e conferiu o segundo na mochila. Dois exemplares da coleção de quase 900 camisas do Cruzeiro mantida em casa, na cidade de João Monlevade. Peças que contam a história desse cruzeirense apaixonado que segue a vida viajando pelo mundo para acompanhar o Time do Povo Mineiro.
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Entre “las camisetas” de Délio, uma relíquia: a da conquista da Libertadores de 1976, contra o River Plate, exatamente no estádio Nacional – onde também ocorreria a peleja de logo mais contra “La U”.
Apesar dessa alegria para a história do Cruzeiro, o estádio Nacional é marcado por ter sido o maior campo de concentração criado pela ditadura militar chilena, instaurada em 1973. Ali, milhares de mulheres e homens foram presos, torturados e assassinados – inclusive brasileiros.
“Mierda!” Délio pensou alto, apertando o pensamento com os olhos. Gelado por ter esquecido a faixa da torcida Motozeiros, que invariavelmente levava consigo nos estádios brasileiros e sul-americanos onde o Cruzeiro fosse pelear.
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Thales despertou com o barulho de pano rasgado. Délio, com o lençol branco nas mãos, disse: “vamos até a rua, rápido!”. Os dois correram ao centro comercial.
Escretes perfilados. No Brasil, milhares de cruzeirenses vidrados na TV. Em especial, os companheiros de Délio – de Monlevade e da Motozeiros. Tentavam lhe encontrar a cada instante em que a TV chilena focava a Nação Azul, instalada próxima à Escotilla 8, setor do estádio transformando em um Sítio de Memória dos horrores cometidos pela ditadura militar chilena, comandada pelo criminoso Augusto Pinochet.
Arrascaeta errou uma bola de forma inacreditável: 0 a 0. Os gols não saíram, mas parte da torcida cruzeirense explodiu em uma alegria incontida. Pela TV, o esquecimento se transformava em história. Lá estava Délio a esticar o lençol do hostel com o nome da “Motozeiros” cuidadosamente pintado com um spray de tinta azul.
Foi ouvindo Délio nos contar esse capítulo de sua história que eu e minha companheira Geisa, a menina cruzeirense do sorriso mais lindo do mundo, cruzamos o céu sobre os Andes, a caminho do Chile. “Quando eu aposentar, eu quero ser o Délio”, confidenciei a ela, ao passarmos pela imigração.
Amanhã, nós três deixaremos Santiago, 500 quilômetros para o norte. Rumo à cidade de Coquimbo, onde o Cruzeiro enfrentará o Palestino. Peleja de “vida ou morte”. Assim como foi aquela de 2018, contra La U, pela Libertadores.
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Naquele ano, semanas após o empate e a bandeira de lençol no estádio Nacional, vencemos os outros três jogos restantes contra La U (7 a 0), Vasco (4 a 0) e Racing (2 a 1). Classificamos de forma heroica.
Que amanhã, o mesmo “virar de página” comece a ser escrito – com spray azul – também na Copa Sul-americana. Délio estará lá com a bandeira da Motozeiros e eu e Geisa com a da Resistência Azul Popular. Afinal, como está imortalizado na Escotilla 8, “um pueblo sin memoria es um Pueblo sin futuro”.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.