
De Mariana à Sapucaí, o carnaval é alegria azul e branca
Era Cesário Cruzeirense. Eu quis abraçá-lo e lhe dizer "muito obrigado" por manter vivo o nosso Zé Pereira da Chácara e por amar tanto o nosso Cruzeiro
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A Portela pintou a Marques de Sapucaí de azul e branco, homenageando o cruzeirense Milton Nascimento. As ruas de pedra de São João del-Rei foram tomadas pela alegria do Bloco Raposão, a maior agremiação carnavalesca de Minas Gerais dedicada à paixão por um time de futebol. As ladeiras de Congonhas e Diamantina entoaram os cânticos da Nação Azul com os blocos da Rapozama e da Máfia Azul.
Mas meus olhos marejaram mesmo quando o Zé Pereira da Chácara apontou pela Rua Dom Viçoso, na minha Mariana, e à sua frente, um boneco catitão de pele negra, cabelos e barbas grisalhas, vestido com a camisa do Cruzeiro rodopiou seus enormes braços de espuma, fazendo a alegria das crianças. Entre elas, eu, no auge da minha infância, aos 48 anos de idade.
A brincadeira dos catitões surgiu originalmente no Rio de Janeiro e se difundiu pelas cidades de Olinda, Mariana e Ouro Preto. O nosso, do Bairro Chácara, existe desde 1852, quando ainda nem era dedicado a festejos carnavalescos, como lembra meu amigo e pesquisador Cristiano Casemiro.
Se o Zé Pereira da Chácara existe até hoje é pelo seu significado para a história de muitas gerações de crianças, mas, principalmente, por pessoas que dedicaram suas vidas a ele.
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Por 50 anos ininterruptos, fosse na garagem de Seu Liberato ou na Toca do Zé Pereira, quem passava via Cesário de Paula concentrado a labutar. Remendando um pano; pregando uma ripa; retocando a pintura das cabeçorras dos catitões ou mesmo participando da criação de um boneco a representar figuras populares da cidade. Gastão, Brigite, Gegê da Banda, Dona Lourdes. Até o meu avô Zizi Sapateiro virou catitão (ainda bem que não o colocaram com a camisa do seu time de coração...).
O Zé Pereira da Chácara era tudo para Cesário, mas sua inseparável camisa azul, com cinco estrelas brancas bordadas no peito, também já dizia sobre o amor eterno que fazia seu coração pulsar de alegria.
“Bom dia, Cesário Cruzeirense”, cumprimentavam as pessoas, quando ele cruzava a ponte sobre o Ribeirão do Carmo, vindo da feira, carregando a sacolinha de verduras. Respondia com aceno, sorriso e amando ser identificado por sua paixão pelo Cruzeiro.
Não passava um dia sequer sem vestir uma de suas dezenas de camisas do time. Inclusive, todos os domingos, ia à missa, na Capela de São Vicente, trajado com o manto sagrado. “De novo, Cesário? O povo vai falar que não tira essa camisa para lavar”, ralhava sua companheira, Dona Lourdes, com medo das fofocas. Ele só apertava a mão dela, ria de canto de boca e fazia o sinal da cruz. Ou melhor, do Cruzeiro do Sul.
Durante as peladas, no Bairro Cabanas, o genro o provocava: quem perdesse, teria de vestir a camisa do time do outro. Cesário jamais aceitou a aposta. Não se enxergava com outra vestimenta senão a do Cruzeiro.
Foi com uma delas – e outra do Zé Pereira da Chácara - que seu caixão foi forrado no dia 29 de julho de 2023. Cesário Cruzeirense foi enterrado no cemitério do São Gonçalo sob aplausos de uma cidade inteira. Se pudessem, até os catitões estariam ali, com os olhos de papel machê encharcados, chorando a partida do amigo.
Dias de vazio, que a filha Luciana e suas quatro irmãs resolveram diminuir, abrindo o guarda-roupas e repartindo a coleção de camisas do Cruzeiro.
No último domingo de carnaval, corria com Valentina pendurada no meu pescoço. Ambos queríamos ver o Zé Pereira passar. Ela pelo catitão da Wandinha. Eu, pelo Boi da Manta.
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Fiquei ao lado de Digão, amigo de infância. Gritávamos, como dois moleques, a cada personagem marianense que surgia a rodopiar. Foi quando o catitão de pele negra, cabelos e barbas grisalhas, vestido com a camisa do Cruzeiro parou à minha frente e me cumprimentou com abaixar da cabeçorra.
Era Cesário Cruzeirense. Eu quis abraçá-lo e lhe dizer “muito obrigado” por manter vivo o nosso Zé Pereira da Chácara e por amar tanto o nosso Cruzeiro.
Que o carnaval continue nos ensinando que a vida é alegria, e não, ódio. Que sigamos amando preservar nossas tradições. Que nós, cruzeirenses, continuemos a ser Cesários.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.