Lei do Silêncio e salão de festa
Numa cultura que valoriza o individualismo, desestimula o vínculo da comunidade e abraça a máxima "farinha pouca, meu pirão primeiro", o que esperar do futuro?
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Aniversário no parque, ou na praça perto de casa. Aniversário em restaurantes, ou na casa de um amigo ou parente, num sítio, num salão de festas. Assim foram as as festas de aniversário até a década de 1990 no Brasil, e assim permanecem sendo as festas de aniversário no primeiro mundo.
Não mais. Pelos últimos 30 anos, talvez pela insegurança pública, talvez por uma jogada de marketing muito bem sucedida, edifícios residenciais se tornaram pequenos clubes recheados de amenidades, uns com quadra de tênis, quase todos com piscina, a totalidade com um salão de festa.
Enquanto as amenidades raramente têm algum uso - apenas um chamariz de vendas -, as quadras e piscinas ainda têm algum público nos primeiros anos, só para assistir a um declínio constante, pesando na taxa de condomínio e na manutenção, mais prejudicando a venda futura do que valorizando o imóvel.
O salão de festas, por outro lado, segue uma unanimidade, infernizando a vida da vizinhança. O roteiro é sempre o mesmo: comida e mesas dentro do salão, e a música - geralmente ao vivo, um pout-pourri que pode começar com MPB ou com os clássicos da música internacional, mas que sempre termina num funk da pior qualidade. Outras unanimidades nesses eventos semanais são o nível do barulho e a falta de consideração e respeito com o horário, alto demais, e até tarde demais.
E não deveria ser assim, quando toda uma vizinhança é incomodada em seu tempo de descanso, por uma única festa. Por vizinhança, temos os moradores do próprio prédio, mas temos também moradores dos prédios próximos - dentre esses, bebês, crianças, idosos, trabalhadores, doentes, estudantes, e uma população em geral que deveria ver seu direito ao silêncio respeitado.
Longe de ser mais um daqueles “direitos difusos”, a obrigação de não incomodar outras pessoas está sempre descrita nas convenções de qualquer condomínio, estipulando regras e limites de horários. O fato de os síndicos não reforçarem as regras aos que as desrespeitam não diminui a falta de respeito, nem esvazia qualquer direito.
O Código Civil, em seu Art. 1.277, assegura aos moradores o direito ao sossego e possibilita a adoção de medidas judiciais contra ruídos excessivos: “O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.”
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Além do Código Civil, cada município tem a sua “lei do silêncio”. Em Belo Horizonte (MG), temos a Lei 9.505/2008 e o decreto que a regulamenta (Decreto 16.529/2016), detalhando horários, níveis de barulho, multas e outras sanções.
Mas nada disso adianta, num contexto onde as prefeituras não têm capacidade (ou interesse) em fiscalizar; os síndicos, em fazer valer as regras da convenção; e cada morador, de respeitar seus vizinhos e sua comunidade.
Nada disso surpreende, e é o resultado esperado quando famílias optam por morar dentro de condomínios isolados da cidade, num micro universo controlado, com forte esquema de segurança, sem tangência com a cidade real. E optam por esse modelo, em parte como solução pela evidente degradação da segurança pública, mas, em parcela talvez maior, por ser o que o mercado imobiliário oferece: condomínios-clube isolados, a maior parte murada e cega para a cidade.
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Quando famílias que se julgam “no direito” de fazer suas festas particulares a despeito da tranquilidade de seus vizinhos e sua comunidade, assistimos - ao vivo - à consolidação de uma cultura que valoriza o individualismo, que desestimula o vínculo da comunidade e que abraça a máxima “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
As famílias têm seu quinhão de responsabilidade; os síndicos, o seu quinhão; e o mercado imobiliário, parte importante. Se ninguém faz a sua parte, se ninguém compreende a importância de suas ações nesse quadro, o que esperar no futuro?
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
