
Calçadas ou armadilhas?
Quando as regras são criadas à despeito da realidade de suas implicações, o que sobra é morar no metaverso
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Ninguém nunca pensou muito sobre isso, mas as calçadas não foram inventadas junto com as cidades. Foram inventadas a milhares de anos, por certo, e ainda assim milhares de anos após as primeiras cidades.
E só foram inventadas em resposta à água e ao esgoto que corria (e continua correndo, vejam só, em tantas cidades nesse nosso Brasil Guaranil) a céu aberto, pelas ruas. As calçadas só foram inventadas, portanto, depois que cidades começaram a ser construídas fora do deserto do oriente médio e norte da África, em locais onde havia… chuva.
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Funcionaram para manter os pés secos por uns 30 séculos, até as pessoas viverem o suficiente para se tornarem idosos, os carrinhos de bebês e as carruagens serem inventados. A partir daí, as calçadas adquirem uma tônica de proteção e segurança, até 1959, quando Jane Jacobs determina que são os lugares mais importantes das cidades, onde a vida acontece, flui, onde as crianças estão seguras, a comunidade fortalecendo seus vínculos e os olhos da rua funcionando para a vitalidade do local.
Para Jane Jacobs, calçadas são a extensão de todas as residências e, muito mais do que um lugar de transitar, um lugar de ficar. São o território comum que conecta o lugar, e conecta as pessoas.
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Não importam pisos sofisticados e detalhes; importa que sejam bem largas com espaço suficiente para as pessoas transitarem, as crianças brincarem, as árvores se desenvolverem e as lojas acessíveis, abertas para as alçadas.
De lá pra cá, em Pindorama, nada mais importa, e a calçada passou a ser uma fenda num universo paralelo onde as medidas pouco importam, e até mesmo as mais estritas, com 1,5 ou 2 metros precisam acomodar árvores e canteiros com medidas mínimas, rampas com inclinação máxima de 5%, faixas de piso tátil.
Não cabe, claro, mas a negação da matemática e do bom senso não parece incomodar os arautos do bom mocismo e da inclusão. Se o papel aceita tudo, a realidade e calçadas de 2 metros de largura não aceitam, e o resultado são passeios que têm tudo o que as leis exigem, exceto o mais básico: idosos, pessoas com dificuldade de locomoção, cadeiras de rodas e carrinhos de bebês, não raro, precisam passar pela rua pela impossibilidade de um trajeto contínuo, com medidas mínimas e pavimento adequado.
Piora ainda mais quando esse exíguo lugar ainda tem, disputando espaço, os postes de energia e cabeamento de internet que permanecem aéreos, quando deveriam ser subterrâneos.
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Em alguns casos, sobre pavimento de calçada portuguesa, uma exigência que beira a loucura de quem nunca se deu conta do quão impróprio e perigoso é transitar (e de vez em quando cair) nesse tipo de piso irregular, cheio de quinas e pontas.
Onde sobram leis, onde regras são criadas a despeito da realidade de suas implicações, o que sobra é isso: uma fenda na realidade, um mundo de faz-de-conta onde as vontades de gabinete se materializam de forma mágica, e tudo funciona.
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Na vida real, infelizmente, a coisa não acontece bem assim, e as cidades teimam em não entregar o básico ao cidadão: um território que conecta a cidade, com largura adequada, trânsito seguro para idosos, cadeirantes e carrinhos de bebês, feita em concreto de alta resistência ou pré-fabricados antiderrapantes (como em Manhattan e Buenos Aires), fáceis de construir e manter.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.