
Errar é humano; insistir no erro…
O avanço civilizatório não vem de evitar o erro, mas por errar, aprender com o erros e fazer melhor da próxima vez
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Sabe qual é a principal diferença entre um urbanista, um arquiteto e um escultor? A escala envolvida no design de uma escultura se dá em centímetros; de um prédio, são metros; e de uma cidade, quilômetros e hectares.
Não é uma questão de importância, valor ou preferência, mas de impacto. Uma escultura impacta as pessoas que a observam a uma pequena distância, e um edifício impacta tanto a pequena população que ali habita, quanto a que transita por um quarteirão. Mas um projeto urbanístico interessa a toda uma população e programa a forma como essa população ocupará o território, determina o tempo de deslocamento diário, o acesso (ou falta de) a áreas de lazer, à cultura, empregos e tudo mais.
Quem faz urbanismo tem a enorme responsabilidade sobre os impactos positivos e negativos de longa duração (quando não, perenes) na vida de milhares de pessoas, não raro de centenas de milhares. O desenho urbano é determinante e influenciará todo o desenvolvimento e terá impacto na mobilidade, no transporte público, no acesso a serviços, na distância aos empregos e no próprio valor dos imóveis. E, em um desenho que teve como premissa e fundamento usos segregados por setores, impedimento de edifícios multifamiliares em determinado local, ou ainda proibição dos usos mistos, a prevalência dessa disfunção – seus impactos nefastos - limitará a possibilidade de melhoria e o potencial daquele lugar.
Imagine, agora, todas essas restrições juntas em uma mesma cidade? Brasília é a manifestação extrema onde todos esses malefícios estão juntos e presentes; mas em porções limitadas do veneno, estão também as metrópoles brasileiras, sobretudo após a década de 1970, com a expansão territorial das cidades a toda velocidade, predominantemente por meio de loteamentos unifamiliares, sem uso misto e com restrição de prédios, contrariando tudo o que já vinha dando certo até aquele momento no Brasil e em todo o planeta.
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Há quem diga que essa visão de cidades teria vindo pelas mãos de Le Corbusier, quando, no Rio, foi consultor do projeto do Ministério da Educação (Palácio Gustavo Capanema), junto com a equipe de Lúcio Costa (que tinha Oscar Niemeyer em sua equipe). Le Corbusier tinha a genialidade dentro de si, mas enxergava as cidades por um prisma ingênuo, quase infantilizado, como territórios de usos segregados, conectados por rodovias, pontes e viadutos, em meio a densas florestas. A isso chamou Ville Radieuse, e, com essa visão romântica, influenciou gerações de arquitetos, urbanistas e gestores públicos.
O que deveria ter permanecido, meramente, como um conceito utópico, acabou sendo aplicado na Índia e no Brasil, no primeiro pelas mãos do próprio e, dez anos à frente, pelas mãos de Lúcio Costa. É certo que a cidade de Chandigarh seja a grande fonte de inspiração do Plano Piloto de Lúcio Costa para Brasília (Le Corbusier, inclusive, tinha oferecido, ainda em 1955, um possível projeto para a capital brasileira, numa carta ao Marechal José Pessoa).
Convidado por Juscelino Kubitschek para projetar a nova cidade, Oscar Niemeyer recusa projetar a cidade (mas aceita projetar os prédios) e sugere um concurso nacional de projetos para o plano piloto, passando a integrar a comissão julgadora, junto com o arquiteto grego Stamo Papadaki e Israel Pinheiro.
O resto é história, mas volto aqui à questão da escala e da aptidão requerida em cada escala: Niemeyer poderia ter projetado uma cidade, mas, ciente de que a sua escala de excelência fosse a dos metros, a própria dos prédios, recusou a oferta. Na escala dos prédios, foi um gênio, ousou e inovou sem medo, criando prédios inéditos, com visadas únicas, verdadeiras obras de arte que fizeram a arquitetura brasileira conhecida - e respeitada - em todo o planeta. Tivesse projetado a cidade, talvez tivesse jogado a reputação no lixo (plano piloto que, atualmente, é fora da bolha de adoração das vacas sagradas da arquitetura e urbanismo brasileiros, tido como a antítese de como pensar uma cidade, o exemplo máximo do que jamais seguir; não raro, a expressão de uma cidade projetada por - e para - um governo autoritário).
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Quem cria esculturas, o faz com a intenção de despertar sentimentos e sensações nos observadores. Quem faz prédios, pretende resolver problemas objetivos e, ao mesmo tempo, maravilhar as pessoas e embelezar o quarteirão, mas, quem projeta cidade, precisa ver muito longe e levar em consideração que a cidade é, antes de mais nada, a plataforma onde a vida acontece e se desenvolve. E um projeto ruim, espalhado, sem densidade e sem uso misto funciona como uma âncora que impede o crescimento pessoal, o desenvolvimento daquela sociedade e a produção de riquezas, como uma máquina mal projetada, pesada e ineficiente que consome combustível demais, para quase não sair do lugar.
Não é fácil reconhecer que o caminho tomado por nossas cidades vem de ideias muito ruins e já obsoletas quando aplicadas, mas não aceitar o fato e insistir no erro mostra, mais do que uma incapacidade cognitiva, uma dificuldade de enxergar a realidade, e os fatos.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.