
BH: a técnica importa mas, sem a visão, não vale nada
Uma marca de pneus dizia, numa propaganda, que "potência sem controle não é nada". No urbanismo, vale o mesmo: técnica sem visão não vale nada
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Aarão Reis nunca saiu do Brasil mas, segundo a lenda, inspirado pela Paris de Haussmann, projetou a Cidade de Minas, a nossa Belo Horizonte. Cantado em verso e prosa por uma academia tacanha, esse fenômeno do urbanismo moderno projetou também a cidade de Soure (e mais nada), na Ilha do Marajó, cidade que, ainda hoje, mal conta com 25 mil habitantes.
Justiça seja feita, Aarão Reis era agrimensor e veio para ajudar escolher o local e fazer os levantamentos. Claramente, não estava à altura do desafio, e delimitou o perímetro mal, muito mal, fazendo do Rio Arrudas não o eixo, mas o limite norte (os fundos) da nova capital, deixando de fora do plano um baixio de excelente topografia, compreendido pela Lagoinha e redondezas.
E, assim, um agrimensor desacostumado aos mares de Minas e com limitado conhecimento do mundo e do urbanismo se tornou, no imaginário belorizontino, o iluminado urbanista que projetou a cidade inspirada em Paris, tese facilmente (ou vergonhosamente, eu diria) desmontada - tanto pelas evidências quanto por Ben Wilson em “Metrópole: A história das cidades, a maior invenção humana”:
“Haussmann anotou em suas memórias a instrução do imperador: “Não hesite em construir em todos os arrondissements de Paris o maior número de praças, de modo a oferecer aos parisienses, como fizeram em Londres, espaços de relaxamento e recreação para todas as famílias e todas as crianças, ricas e pobres”. Haussmann criou quatro parques imensos e magníficos, acrescentando 600 mil árvores e quase 2 mil hectares de espaço aberto à cidade, e incorporou 24 novas praças ao seu projeto. Nenhum parisiense precisaria caminhar mais de dez minutos para chegar a um espaço aberto.”
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A Paris reformulada tinha o percurso do poder, as perspectivas institucionais e os grandes pontos de encontro mas, sobretudo, uma chance de que um grande centro urbano em plena revolução industrial pudesse ser, ao mesmo tempo, um local saudável (que, até aquele momento, não era).
“O sistema circulatório da cidade estava coagulado e precisava ser descongestionado, abrindo a escuridão à luz e ao vento, permitindo que os cidadãos se movessem mais livremente pela metrópole. A Europa enfrentava um apocalipse urbano de doenças, revoluções e colapso social — um colapso que tinha origem em lugares como Manchester e que agora alcançava sua culminação em Paris.”
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Em Haussmann, Napoleão encontra alguém com determinação, visão e energia para realizar a sua visão: “Paris é o coração da França”, declarou meses mais tarde. “Apliquemos nossos esforços para embelezar esta grande cidade. Abramos novas ruas, tornemos mais saudáveis os bairros operários, que carecem de ar e luz, e que o sol benéfico alcance tudo no interior dos nossos muros.”
Se a Cidade de Minas foi concebida mirando a “cidade-luz”, fez mal ou sem compreender a amplitude da visão de Haussmann e a abrangência de suas intervenções. Ao contrário do imaginário popular, Belo Horizonte adota em seu plano os eixos de institucionalidade e poder, e a importância de seus cruzamentos, criando alguns largos que propiciam boas perspectivas, mas desprezam a população e a vida diária da cidade.
O Parque Municipal, a Praça da Liberdade e o Zoológico são o extrato dos espaços de lazer projetados no plano original, porque as demais praças estão lá, não como espaços de lazer, mas como espaços vazios projetados para reforçar a institucionalidade dos prédios públicos e centros do poder público (como em Washington, mas em menor escala) e religiosos. Descampados podem funcionar para demonstrações de poder e protestos, mas não se prestam a locais de passeio, descanso e lazer, como as de Paris. Não melhoram a qualidade de vida da cidade.
As pequenas praças de bairro são raras, raríssimas. Alguns poderiam atribuir essa escassez ao urbanismo em grelha adotado, mas é mais provável que seja mesmo fruto de desinteresse e visão limitada, porque a existência de linhas em diagonal propiciam esquinas em forma de triângulo mais do que propícias para, ao contrário do plano original, criar dezenas de pequenas praças distribuídas pelos bairros.
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A Comissão Construtora da Nova Capital podia até ter alguma técnica (ou a técnica para a empreitada), mas jamais teve a visão ou a ambição necessárias para criar as bases de uma cidade nascida para durar, preparada para evoluir, crescer e se desenvolver, saudável.
Mas, assim como das sobras vieram a feijoada e o cassoulet, até mesmo planos ruins podem ser corrigidos e gerar vitalidade, com visão larga, olhar longo e bons planos de regeneração urbana. Belo Horizonte tem, hoje, com o plano de regeneração de seu Centro e com a unanimidade quanto à importância do aumento da densidade (por qualquer um com mais de 2 neurônios), uma chance melhor do que teve nos últimos 40 anos para retomar relevância, importância e crescimento, atacando as chagas da desigualdade social ao atrair para perto a população de baixa renda.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.