
Nem o mecenato, nem os concursos. Apenas a escuridão
O estágio civilizatório não é medido pela riqueza, mas pelas demonstrações artísticas, culturais e arquitetônicas. Onde o Brasil estaria nessa escala?
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Não há como precisar o ano exato em que tudo começou. Para a família Médici (Florença), começou com Giovanni di Bicci de Medici, (1410), e seguiu por gerações até Lorenzo de Medici (Lorenzo, o Magnífico), em 1492. Para a família Sforza (Milão), a coisa aconteceu entre 1480 e 1499 pelas mãos de Ludovico Sforza (Ludovico, o Mouro). Já em Ferrara, tivemos Ercole I d'Este (1471-1505), e, pela Igreja Católica, os Papas Papa Júlio II, Papa Leão X (membro da família Medici) e Papa Clemente, de 1503 a 1541.
A renascença italiana abraçou a arte, resgatou a importância da beleza e projetou artistas como Sandro Botticelli, Leonardo da Vinci, Michelangelo Buonarroti, Donatello, Filippo Brunelleschi, Donato Bramante, Dosso Dossi, Rafael Sanzio e Caravaggio, produzindo um conjunto de pinturas, esculturas e edificações (igrejas, mosteiros, castelos, vilas) de uma riqueza cultural até então desconhecida.
Um marco civilizatório traduzido na percepção, de certa forma radical (para a época), de que a arte eleva não apenas o observador, mas molda uma forma de pensar e agir (a cultura, portanto) compatível com os novos ideais.
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Trevas, sombras, claustros, cenários taciturnos e cômodos pouco iluminados dão lugar a uma arquitetura de luz, muitos jardins, arte, cultura, literatura, poesia e a celebração da humanidade. É a conjuração definitiva da iniciativa privada na promoção das artes, da arquitetura e da cultura como um todo.
Corta para os dias de hoje. Qualquer pessoa que tenha uma conta no Instagram (e uma curadoria mínima), pode acompanhar a enorme quantidade de novos museus, novas escolas, novos edifícios universitários, novos campi, parques, praças, novos prédios residenciais, novos centros empresariais. Pode acompanhar, enfim, a importância e a abrangência que a arquitetura tem hoje em uma sociedade, seja moldando cidades e criando novos lugares, áreas de lazer, pólos culturais, seja marcando o estágio civilizatório e o apreço pela cultura de um determinado lugar.
Engana-se quem pensa que esse conjunto esteja restrito ao hemisfério norte ou ao “primeiro mundo”. Há belos e importantes exemplares na Argentina, na Colômbia, no Chile, no México, tanto quanto em países africanos e asiáticos, em Israel e no Irã, países ricos e países pobres, grandes e pequenos.
Fazer boa arquitetura já não é questão de dinheiro, mas de marco civilizatório. É um atestado do estágio cultural e humano, uma declaração inequívoca da importância na formação de seus cidadãos e das futuras gerações.
Em todos esses países, arquitetura é coisa séria (mas não necessariamente cara). Não há prédio público, escola, parque ou praça que não tenha seu projeto escolhido a partir de um concurso público, totalmente aberto ou um pouco mais restrito, para arquitetos realmente renomados (não os “amigos do Rei").
A determinação legal é de que toda nova edificação que receba recursos públicos seja contratada por concurso. Mas, para além da determinação legal, há uma imposição mortal para que todas as novas edificações sejam bonitas, impactantes, bem construídas e, se possível, inovadoras, tanto na imagem arquitetônica quanto na qualidade do espaço construído, materiais utilizados e conforto ambiental. Cada novo prédio é, ao mesmo tempo, um presente para a população, um patrimônio público de qualidade, um fator de regeneração urbana e, eventualmente, um novo destino turístico.
São escolas feitas de tijolos de barros e adobe em países africanos (que renderam, inclusive, o Prêmio Pritzker, o Oscar da arquitetura, para Francis Kéré), mas são, também, museus no Chile e parques nas cidades chinesas; são bibliotecas e centros culturais em favelas na Colômbia, são casas de música na Dinamarca; podem ser coberturas de praças na Espanha, e mais uma infinidade de melhorias urbanas, prédios grandes e pequenos no México, aquele país de terceiro mundo dominado pelo narcotráfico.
Em comum entre eles, pouco mais do que o apreço pela arquitetura e pela arte, numa genuína preocupação com a melhoria da cidade. O Brasil, em oposição, detesta a arquitetura, detesta concursos públicos e detesta a inovação, demonstram os fatos.
Os fatos, no caso, são apenas um: a legislação nacional para contratação de projetos é basicamente a mesma para compra de papel higiênico e execução de usinas hidrelétricas, não apenas desestimulando concursos de projeto, mas praticamente eliminando a possibilidade. Sobram os profissionais internos dos órgãos concebendo (olhe em volta), a empreiteira vencedora conceber (como se tivessem sido os profissionais dos órgãos), ou outorgar o projeto a “amigos” sob alegação da “dispensa de licitação” ou “notório saber”.
A arquitetura só tem importância quando é valorizada, debatida e aberta à participação de todos os arquitetos. Um país só cresce culturalmente e evolui em termos civilizatórios quando tem prédios contando essa história, embelezando suas cidades e mostrando o potencial e a engenhosidade daquela população (não o “poder” de um governo, mas o quanto disso retorna para seus cidadãos).
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Nem mesmo a corrupção endêmica em parte dos países é capaz de conter o apreço pela arquitetura. A questão, no Brasil, passa mesmo pelo descaso, pelo desinteresse e, talvez, pela falta absoluta de qualquer capital cultural, sequer o mínimo. Todos aprendem o mesmo alfabeto, mas apenas onde há o apreço pela cultura, as letras são montadas em forma de filosofia, literatura e poesia.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.