Eu vi um menino correndo. Eu vi o tempo
Essa força estranha levou 20 mil pessoas ao Paraguai. Não fui e já arrependi. Vai passar assim que a gente ganhar
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É hoje, minha gente. Quantas vezes você acordou em dia de decisão? Um dia sem qualquer compromisso com a hora do relógio, a não ser às 17 horas. Um dia feito de pelo menos uma semana antes e uma semana depois. Tenso. Feito de amor e esperança. Pra se estar junto aos nossos. Pra lembrar os que se foram. Pra explicar pros meninos aquilo que não se explica. Pra mostrar pra eles que sonho que se sonha junto não é sonho, é realidade.
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Em 1980 acordei no dia da decisão e meu pai me levou nas Lojas Bakana, onde se podia comprar bandeiras do Galo. Depois saímos em sua Brasília com a bandeira pra fora. Eu tinha apenas 8 anos, e era uma tarefa hercúlea a torcida contra o vento. Tinha uma vida pela frente e não podia imaginar que o vento só perderia 33 anos depois.
Naquele dia, em 2013, acordei num hotel do centro porque, ciente da esbórnia, achei por bem evitar a casa dos meus pais (sou atleticano exilado em São Paulo desde 1996). Só chorava. Uma confusão de emoções conectava meu passado e meu presente. Lembrei da bandeira pra fora da Brasília, meu pai devia ter a minha idade. A gente merecia tanto. Por que Deus fez isso com a gente?
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Agora eu tava ali, vestindo a minha camisa da sorte, a bem da verdade, a camisa do azar. A camisa com a qual perdera quase tudo, uma Penalty 1984 com o número do Nelinho nas costas. Já não acreditava mais em Deus, tampouco nos homens. Mas os sonhos não envelhecem, Lô, seu cruzeirense, e lá estava eu esperando pela desforra com a minha velha e carcomida armadura. Turrão. Vou ganhar com ela.
Em 1999 acordei em São Paulo com meio corpo queimado pelo sol – o lado esquerdo que ficara lateralmente exposto durante as 10 horas em que aguardamos na fila do ingresso para a final. Mudos, porque meu amigo Kiko achava que o sotaque mineiro acabaria por nos entregar ao inimigo. Antes de sair para o Morumbi, preparamos a viagem para Minas assim que o título viesse. O plano era cruzar a fronteira o quanto antes, passar ali pela alfândega de Extrema, e esbaldar-nos entre os nossos em qualquer buraco onde se falasse o mineirês.
Naquele dia, ainda pela manhã, furamos de tanto tocar um CD que eu tinha com a campanha de 1971. Chorava a cada vez que o Vilibaldo Alves narrava o final do jogo no Maracanã: “Quereeeeeeeenta e cinco minutos! As lágrimas escorrem em minha face! O Galo é o campeão da raça, da fibra, do amor!”. Eu sonhava tanto com aquilo. Eu precisava ouvir o Willy Gonzer ganhando aquele dia. Tinha tão pouco a ver com futebol. Era, sei lá, a minha vida, a minha espera, a minha terra, a minha gente.
Detratores dirão que, hoje, é um título menor. Nosso título, no entanto, é ser atleticano. Hoje, cada um de nós é aquela menina sangrando depois de escalar o alambrado de arame do estádio, na hora que o Racing ganhou do Cruzeiro a decisão do ano passado. Sou eu e meus amigos, todos atleticanos, na rua do Ouro dos anos 80, sempre Galo, Galo sempre! Sou eu e meu filho Francisco, hoje, na mesma rua. Ele acabou de fazer 18. Paulistano, quis de presente uma tatuagem do Galo. Desculpem vocês, mas eu já sou campeão e nem tô na Austrália.
Hoje acordo só a Gal, só o Caetano Veloso: eu vi um menino correndo, eu vi o tempo. Brincando ao redor do caminho daquele menino. Eu pus os meus pés no riacho e acho que nunca os tirei. O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei. Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha. A força atleticana revolucionária.
Essa força estranha levou 20 mil pessoas ao Paraguai. Não fui e já arrependi. Vai passar assim que a gente ganhar, porque um descrente de Deus sempre crê no Efeito Borboleta, e nada poderá ter sido diferente. Nem a minha camisa 4, a beca em estado de trapo, o amuleto que escolheu esperar.
Hoje vamos testemunhar a maior invasão de uma torcida brasileira ao exterior. Essa gente foi buscar a taça, mas isso é só uma alegoria. Porque o que essa gente foi buscar mesmo é a si mesma. Foi revisitar o menino correndo. Foi botar de novo a bandeira pra fora do carro e torcer contra o vento. Entendida sobre a vida adulta, foi buscar o copo meio cheio, foi fumar o ópio do povo pra dar conta de tanta sacanagem.
O que aqui ficaram estão a juntar velhos amigos em velhas esquinas, na esperança de mais um baile. O baile da vida. Um bar. Assim que ganhar, vão fazer a peregrinação à Meca de Lourdes. Vão abraçar desconhecidos no caminho daquele menino. Perder a voz no grito de Galo que apanhou o grito de um Galo antes e o lançou a outro, e de outros Galos que com muitos outros Galos se cruzaram, a tecer a manhã no aeroporto, à espera do Galão.
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Ateus erguerão as mãos para os céus, e agradecerão a sorte de ter nascido Galo. Não descarto a possibilidade de tudo isso ser uma grave doença.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
