A aula que Zema não estudou
Romeu Zema, que costuma se orgulhar de sua visão 'moderna' de gestão, mostrou um desconhecimento elementar de como funciona uma sala de aula
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Era previsível, inevitável. Mas, ainda assim, o governo mineiro parece surpreso com o resultado de colocar quase 30 mil adolescentes — trinta mil — dentro do Mineirão para um “aulão de inteligência artificial”. Infelizmente, há algo de tragicômico aqui: para dar uma aula sobre IA, faltou ao próprio governo uma compreensão básica da inteligência humana. Especificamente, da humana adolescente.
Romeu Zema, que costuma se orgulhar de sua visão “moderna” de gestão, mostrou um desconhecimento elementar de como funciona uma sala de aula, especialmente a da escola pública. Se controlar 30 alunos já desafia qualquer professor do país, o que dizer de reunir 30 mil num estádio, com arquibancadas, calor, rivalidades escolares, disputas de uniformes e a inevitável energia caótica da adolescência? É pedir para dar errado — e deu. A pancadaria foi apenas o sintoma mais visível de uma ideia mal concebida desde o início.
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Será que o responsável intelectual pela empreitada foi Rossieli Soares, o Secretário de Educação? Sua trajetória é conhecida em diferentes governos, sempre defendendo soluções grandiosas, tecnocráticas, mas raramente conectadas com a realidade da escola. E agora, em Minas, voltou a apostar na fórmula: uma megaoperação de marketing educacional travestida de inovação.
O secretário coleciona controvérsias por sua tentativa de minimizar o uso de material impresso nas escolas: durante seu tempo como secretário da Educação em São Paulo, sua gestão apostou fortemente em conteúdo digital próprio, abrindo mão da compra de livros tradicionais por meio do PNLD, o que provocou atrasos e falta de material nas escolas — muitos estudantes ficaram sem livros impressos e professores foram obrigados a improvisar com folhas de sulfite ou atividades impressas de última hora.
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Além disso, em sua época como ministro da Educação, aprovou uma retificação de edital que enfraqueceu critérios de qualidade: o novo edital retirou a exigência de referências bibliográficas nos livros, relaxou o controle de erros e até permitiu publicidade nas obras — medidas criticadas por possíveis riscos à rigidez pedagógica e à credibilidade do material. Esse conjunto de decisões revela uma visão na qual a “modernização” digital acaba penalizando justamente quem mais precisa de suporte físico e confiável.
O Governo de Minas parece acreditar que inteligência artificial é uma espécie de atalho mágico, capaz de compensar anos de problemas estruturais — salas lotadas, baixos salários, falta de formação continuada, ausência de equipe de apoio, indisciplina crescente, evasão, desigualdade brutal. IA é ferramenta. Quem resolve educação é gente: professores, gestores, psicólogos, famílias, estudantes. Não há algoritmo que substitua isso.
Para quem vê a escola de longe, tudo parece simples. Basta juntar todos os alunos, colocar um telão, chamar um palestrante, distribuir certificados e anunciar ao Brasil um grande feito educacional. Mas a educação não é evento. É processo. É cotidiano. É relação humana. É experiência construída em sala de aula — e sala de aula não é estádio.
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O governo mineiro perdeu a oportunidade de fazer um debate sério sobre tecnologia na educação e preferiu um espetáculo. E, como acontece com todo espetáculo mal dirigido, o que ficou foi o constrangimento.
Aprendemos com a educação que a verdade, muitas vezes, é indigesta: não faltou inteligência artificial no Mineirão. Faltou foi inteligência real no planejamento.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
