
Doutores em desumanidade: o currículo oculto dos monstros visíveis
Enquanto transformávamos nossos alunos em clientes, perdemos a autoridade moral de formar cidadãos
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Violência obstétrica cometida por médica influencer. Estudante de medicina filma exame ginecológico. Outra dupla — futuras médicas — zomba de uma paciente transplantada, que morre dias depois, enquanto o vídeo viraliza na incubadora de imbecis das redes sociais. O que essas histórias têm em comum, além da formação acadêmica das envolvidas? Um processo formativo oculto em escolas espalhadas pelo Brasil.
Não, não há uma relação direta, visível e óbvia que nos entregue uma análise precisa, revelando a encruzilhada onde todos esses casos se encontram. Porém, a ciência existe justamente porque a realidade — felizmente ou infelizmente — não é um mar de evidências claras. E lá vamos nós: levantando perguntas e dilemas, em busca de um caminho que nos leve para longe desse tipo de gente, seja na vida, seja na sala de espera do consultório.
Sabemos que a educação não é uma panaceia capaz de curar todos os males da sociedade. Escola não é igreja — por mais que alguns parlamentares de Belo Horizonte queiram nos confundir — e docência não é sacerdócio. Mas o currículo escolar é, sim, um excelente espelho da sociedade em que vivemos e uma bússola potente para orientar o futuro que construímos, gostemos dele ou não.
Na educação, falamos de currículo oculto: um conjunto de valores, normas, atitudes e comportamentos transmitidos de forma não explícita no ambiente escolar, complementando — ou, muitas vezes, contradizendo — o currículo formal. Trata-se de uma dimensão implícita da educação que molda subjetividades, influencia a construção da identidade dos estudantes e reproduz estruturas sociais, quase sempre de forma inconsciente.
Ao socializar os alunos para certos papéis e expectativas, o currículo oculto contribui para a manutenção — ou contestação — das hierarquias de classe, gênero, raça e poder. Ele educa mesmo quando ninguém está ensinando. É o espelho mudo das contradições sociais, perpetuando padrões ou possibilitando rupturas — a depender da consciência crítica de quem ensina e de quem aprende.
Em outras palavras — agora, numa definição nem tão oculta assim — o currículo oculto é aquele conteúdo invisível que escorrega entre as carteiras da sala de aula, sem passar pela lousa nem pedir licença à apostila. É o “ensino por osmose”, onde o aluno aprende que menina deve ser delicada, que pobre tem que agradecer por estar na escola, e que obedecer vale mais que pensar. É o que o professor ensina sem saber, e o aluno aprende sem querer. Enquanto o currículo oficial grita “respeite o próximo”, o oculto cochicha: “respeite quem manda”.
A escola, nesse caso, vira um teatro com script escondido: no palco, ensina-se cidadania; nos bastidores, treina-se subordinação. E o pior: quem se forma sem perceber isso sai diplomado em desigualdade e bacharelado em obediência. No fim das contas, o currículo oculto é o maior professor da escola — pena que não tem nome no diário de classe.
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É aí que ele encontra terreno fértil para formar os cretinos digitais, essa fauna moderna armada com celulares e carência de noção, que acredita que o outro é apenas figurante da própria timeline. Zombam da dor alheia, expõem corpos como se fossem stories, tratam o sofrimento como entretenimento. A ética ficou no PowerPoint da aula de filosofia que ninguém prestou atenção porque “não vai cair na prova”. O respeito virou figurinha rara no álbum da formação humana.
E então nos perguntamos: como chegamos nesse ponto? Como é que uma futura médica zomba da agonia de uma paciente em processo de transplante? Como uma obstetra se torna influencer digital, mas não sabe interpretar literatura médica? Como uma estudante filma uma consulta ginecológica como se fosse um unboxing da Amazon?
Tendo a acreditar que isso não começou na faculdade. Talvez a pedra fundamental dessa arquitetura em crise tenha sido lançada ainda na educação infantil — quando a escola silenciou diante do bullying, premiou o mais obediente e invisibilizou o sensível. Quando fez da empatia um item de marketing nas aulas de “competência socioemocional”.
Enquanto transformávamos nossos alunos em clientes, perdemos a autoridade moral de formar cidadãos. A escola virou uma loja: pais cobram como consumidores, estudantes reclamam como fregueses, e professores se tornam vendedores de apostilas. E o que acontece com uma loja que só quer agradar? Ela para de corrigir, para de educar, para de incomodar. Em nome do “bom atendimento”, deixamos de frustrar — e, junto, de educar. E nesse vazio, o cretino digital se forma com louvor, mas sem pudor.
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O currículo oculto ensinou — sem jamais escrever — que o importante é vencer, aparecer e lucrar. O resto é detalhe. O outro? Um obstáculo. A dor? Um viral. A ética? Um post no Dia da Consciência Negra que ninguém lê. E aí nos assustamos com os monstros que criamos — mas eles não vieram do nada. Foram educados no silêncio das omissões e na pedagogia da conivência.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.