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Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

Enzo, um pouco de estoicismo, por favor

Já começa errado, Enzo. Oferecer algo a alguém, especialmente a um CNPJ, precisa ser bem calculado

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Caro Enzo, aqui estou eu de novo, tentando desviar seu foco, determinação e resultados para algo mais significativo e—ouso dizer—deliberadamente desimportante. Juro que hoje queria falar de futebol, discutir o início do campeonato, o novo técnico da seleção, mas você não me deixou escolha. Como um amigo mais velho, temo que, ao optar por não te alertar, acabe contraindo alguma dívida cósmica com esses seres interestelares em que você tanto acredita. E, francamente, prefiro não arriscar. Vai que, do lado de lá, realmente existe alguma coisa: alienígenas, duendes, divindades ou até mesmo uma Samambaia Criadora do Universo. Como diria nosso amigo Pascal, “há dois tipos de pessoas: as que têm medo de perder Deus e as que temem encontrá-lo”.

Outro dia nos encontramos, lembra? Você, como sempre, correndo pela vida, saindo de um coworking. Me desculpei pela ignorância, mas confesso que demorei a entender do que se tratava: um lugar "moderno e descolado" onde você paga para trabalhar num ambiente barulhento, cercado de estranhos que falam alto sobre startups disruptivas, enquanto disputam tomadas e fingem ser mais produtivos porque têm café grátis e pufes coloridos. Convidei você para tomar uma cerveja antes do almoço, lá no Boteco do Chicão, mas a resposta veio automática: “Agradeço o convite, mas, infelizmente, não posso.” Eu ainda tentava assimilar sua negativa quando você desferiu os argumentos de sempre: que beber antes do almoço compromete a produtividade, que estava focado em entregar resultados, que sucesso é disciplina. Depois, vieram os mantras do novo sacerdócio corporativo: mindset vencedor, alta performance, otimização do tempo… Essas coisas que diferenciam os iluminados do LinkedIn dos meros mortais que ainda perdem tempo com futebol, conversas triviais e outros prazeres supérfluos.

E foi aí que a traíra mordeu a isca de verdade. O relâmpago do estoicismo me atingiu em cheio. Claro que ouvi atentamente suas siglas corporativas (admitamos: soam como piadas de quinta série). Enquanto você falava de KPIs, eu só conseguia pensar que significava “Krises Psíquicas Intensificadas”. OKRs? "Obrigações Kafkianas Ridículas". E B2B? Óbvio: "Babacas tretando com babacas". Mas foi o tal "dar o seu melhor" que realmente me intrigou.

Enzo, de novo: essa ideia de oferecer algo precisa ser muito bem calculada. Não se decide do dia para a noite. Ainda mais quando esse "alguém" é um CNPJ. Não tem rosto, não sente nada e, sejamos francos, não gosta de você. Já falamos sobre esse papo de gratidão nas cartas anteriores. Espero que tenha aprendido, não é? Vamos lá! Não estamos discutindo Kant e sua Revolução Copernicana ou as condições de possibilidade do conhecimento. Isso aqui é simples. Você pode argumentar que oferece o que é seu para quem bem entender. Mas, se for seguir por esse caminho, proponho que, ao invés de despejar sua vitalidade num grupo de acionistas invisíveis, você a direcione para uma paixão arrebatadora, um time de futebol ou até mesmo um ócio desorganizado e deliciosamente improdutivo. Mas não para essa entidade sobrenatural e impessoal que você chama de "Workaholics Unlimited", onde o expediente nunca termina e o burnout é apenas um detalhe.

Veja bem, Enzo, sei que você acredita que essa tal "entrega de resultados" tem um propósito maior. Que cada reunião sem fim, cada planilha colorida e cada palestra sobre "mindset exponencial" te conduzem a alguma espécie de iluminação empresarial. Mas talvez um dia você perceba que não existe nirvana no LinkedIn—apenas uma fila de desesperados disputando quem finge ser mais apaixonado pelo próprio trabalho.

Mas voltemos ao ponto: dar o seu melhor. Você quer mesmo me convencer de que entregar sua vitalidade para um conjunto de acionistas que nem sabem o seu nome é o grande projeto da sua vida? Que sua energia—essa força preciosa que já inspirou poetas, mártires e visionários—agora serve para alimentar um sistema que, na melhor das hipóteses, te manda um e-mail frio com "parabéns pelo seu esforço", seguido de um aumento de 2% que mal cobre a inflação?

Epicteto, o estoico que começou a vida como escravo—uma posição não muito diferente da sua, só com menos PowerPoint—dizia que a única coisa que realmente controlamos são nossos pensamentos e atitudes. Mas você parece acreditar que pode controlar tudo, desde a curva de crescimento da empresa até a exata quantidade de dopamina liberada ao riscar uma tarefa da sua to-do list.

Enzo, talvez você seja um verdadeiro monge do capitalismo, dedicado ao ascetismo do lucro e ao nirvana dos gráficos ascendentes. Mas me permita insistir: sua negação ao convite não foi racionalidade, foi apenas a falta de palavras diante do trágico espetáculo de um homem que trocou um chope gelado por uma reunião sobre sinergia corporativa. De qualquer forma, continuarei indo ao Boteco do Chicão enquanto você segue firme na sua cruzada produtivista, ignorando a velha sabedoria de que os grandes encontros da humanidade sempre aconteceram em torno de uma mesa de bar. O Renascimento? Café e vinho. A Revolução Francesa? Cerveja e pão.

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Então siga em frente, Enzo. Seja o cidadão-modelo da Roma moderna, aquele que se preocupa obsessivamente com aquilo que não pode controlar—números, métricas, a opinião do chefe—enquanto negligencia o que realmente importa: a arte de bem viver.

Seu amigo, um simples estoico.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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