Etiene Martins
Etiene Martins
Jornalista, pesquisadora das relações étnico-raciais e doutoranda em Comunicação e Cultura na UFRJ
ARTIGO

Itamaraty aprova branco em vagas para negros em concurso para diplomata

Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel

Publicidade

Mais lidas

Samuel Procópio é um jovem negro, periférico, de 25 anos, que em pouquíssimo tempo construiu um currículo Lattes admirável. Formado em Direito pela PUC Minas e em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atualmente é mestrando em Direito Internacional também pela UFMG. Recentemente, foi aprovado em um concurso para diplomata. Filho de uma professora da rede estadual de ensino, mulher negra e mãe solo, Samuel cresceu na região de Venda Nova - BH enfrentando o racismo e as dificuldades econômicas de uma família que acreditava na educação como única herança possível.

Fique por dentro das notícias que importam para você!

SIGA O ESTADO DE MINAS NO Google Discover Icon Google Discover SIGA O EM NO Google Discover Icon Google Discover

Foi um dos poucos alunos negros na escola onde cursou, como bolsista, o ensino fundamental e médio. A bolsa o isentava da mensalidade, mas não do alto preço emocional de conviver, desde muito cedo, em um ambiente sem diversidade racial, o que custou sua autoestima. Cresceu sendo alvo de olhares que duvidavam de sua capacidade, de professores que o subestimavam e de colegas que o faziam questionar o próprio valor. Somente ao concluir o ensino médio, longe desse ambiente, percebeu que o problema nunca foi ele. E pôde sonhar mais alto: queria ser diplomata.

O sonho, no entanto, parecia quase impossível. Sua mãe, professora da rede pública estadual, se desdobrava entre escolas e tarefas extras para pagar os cursos preparatórios. O salário, como se sabe, é precário. Contaram com a ajuda de avós, tios, amigos e professores, um esforço coletivo de uma família negra apostando contra a estatística, a mesma que mostra que, a cada 24 minutos, um jovem negro é violentamente assassinado no Brasil.

E Samuel conseguiu. Foi aprovado na reserva de vagas destinada a candidatos negros. Até que o nome de outro candidato surgiu: Anilton Roberto Turibio Júnior, filho de um delegado da Polícia Federal. Anilton demonstra seu alto poder aquisitivo em fotos nas redes sociais, ostentando viagens por diversos países da Europa. Diferentemente de Samuel, Anilton tem pele branca e cabelos lisos.

Em 2014, ao prestar vestibular para a Universidade Federal de Uberlândia, Anilton concorreu pela ampla concorrência. Fez o mesmo nos concursos de 2022 e 2023 para diplomata. Mas, em 2025, decidiu se autodeclarar negro. Foi o suficiente para disputar a mesma vaga que Samuel e “vencê-lo”.

Na primeira banca de heteroidentificação, composta por cinco pessoas, Anilton foi eliminado, considerado branco. No entanto, após recurso, uma segunda banca o aprovou como negro. Assim, Samuel perdeu a vaga que havia conquistado para uma pessoa que nitidamente não sofre exclusão racial no Brasil.

Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel. A prova disso é ver Samuel se tornar alvo de uma injustiça que retira seu direito de acesso a uma política pública destinada a pessoas negras, usada, neste caso, para privilegiar um candidato branco.

Anilton Roberto Turíbio e o filho Anilton Roberto Turíbio Júnior
Anilton Roberto Turíbio e o filho Anilton Roberto Turíbio Júnior Redes sociais/Reprodução
 

O caso levanta uma questão urgente: quem está monitorando a política de reserva de vagas para candidatos negros? Quando um homem branco é reconhecido como negro, enquanto um jovem negro perde um direito que lhe é garantido por lei, a política de promoção da igualdade racial se torna refém da branquitude e da mesma desigualdade que tenta combater.

Segundo o IBGE, pessoas negras representam 56% da população brasileira, mas continuam sendo as que menos acessam cargos públicos, as que mais morrem e as que mais sofrem com pobreza e violência. São também as que mais precisam provar, em cada espaço, que pertencem.

As políticas de ação afirmativa racial foram criadas para minimizar essa desigualdade. Não são um favor. São um direito. E quando o Estado permite que esse direito seja distorcido por decisões questionáveis de heteroidentificação, reforça o que a história sempre fez: retirar das mãos negras aquilo que lhes pertence por justiça.

Nesse roubo, Samuel não perdeu apenas uma vaga. Perdeu o direito de acreditar que esforço e dedicação bastam.O caso dele é mais do que um erro administrativo é um retrato cruel de um país que insiste em privilegiar a branquitude até mesmo nas políticas públicas destinadas à população negra.

Tentei contato com Anilton Júnior, com a banca organizadora do concurso e com o Ministério das Relações Exteriores para questionar os critérios utilizados pela segunda banca de heteroidentificação. Até o fechamento desta coluna, não obtive retorno. Assim que o candidato e as instituições se manifestarem, este texto será atualizado com as respectivas respostas.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

Tópicos relacionados:

concurso negros

Acesse o Clube do Assinante

Clique aqui para finalizar a ativação.

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay