
Priscila Rezende: a expressão de arte e resistência do corpo negro
Sua trajetória tem sido marcada por um engajamento profundo com as questões raciais, de gênero e classe
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Priscila Rezende é uma das vozes mais contundentes da performance art contemporânea brasileira. Essa belo-horizontina artista visual, performer e educadora além de mestre em artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. Sua trajetória tem sido marcada por um engajamento profundo com as questões raciais, de gênero e classe, sobretudo a partir da experiência do corpo negro feminino na sociedade brasileira. Em suas performances, Priscila utiliza o próprio corpo como território de embate e expressão — um corpo historicamente marcado pela dor, pela exploração, pela hiperssexualização, mas também pela potência, pela memória e pela liberdade criativa.
O trabalho artístico da Priscila já percorreu diversos estados brasileiros e também alguns países como a Alemanha, a Inglaterra, EUA, Espanha, Holanda e Polônia. Nesta breve entrevista, ela reflete sobre sua formação acadêmica, compartilha os processos de criação de obras impactantes como “Vem... pra ser infeliz” e “Bombril”, comenta as reações do público e discute a recepção internacional de seus trabalhos. Em um país onde o racismo insiste em silenciar e inviabilizar corpos negros, Priscila faz da performance uma estratégia de denúncia e também um gesto de reinvenção, afirmação e resistência.
Queria começar te perguntando sobre a sua trajetória acadêmica. Como foi sua formação e de que forma ela influenciou a sua prática como artista performer?
Eu comecei o curso de Artes Plásticas no ano de 2008, na Escola Guignard/UEMG. Entendi, ao longo do curso, que de fato não conhecia muito de arte quando iniciei. Sabe como é? Vim de uma família pobre, que não tinha o hábito de frequentar exposições. Meu contato com a arte ao longo da vida se deu através de algumas revistas em quadrinhos que minha mãe ganhava quando trabalhou, por um tempo, numa escola, quando eu era criança. Às vezes, quando íamos dar a volta na Lagoa da Pampulha de bicicleta, passávamos brevemente no Museu de Arte da Pampulha. Mas eu sempre gostei de desenhar desde criança; era um passatempo para mim, e sempre fui autodidata.
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Já na adolescência comecei a me interessar por música e por fotografia. Foi por causa da fotografia que decidi fazer o curso na Guignard, pois vi que lá havia a disciplina de Fotografia e habilitação na área. Entrei no curso pensando em ser fotógrafa, e lá fui descobrindo muitas outras possibilidades de criação artística — entre elas, a performance. O encontro com a performance foi fabuloso para mim, pois sempre me interessei por atividades que envolvessem o corpo desde criança. Descobrir que eu poderia fazer arte com o meu próprio corpo, e que ele é uma ferramenta muito potente de diálogo, foi, em alguma medida, um bálsamo.
Hoje, depois de muito estudo, aprendi que, de fato, o nosso corpo fala em mínimos movimentos — ou até mesmo parado. Na arte da performance, existe um lugar de criação imagética onde posso construir minha fala como desejo, e isso é muito poderoso. Encontrei na performance a voz que a sociedade trabalhou tanto para silenciar. Esse lugar de liberdade tem sido impagável para mim.
2 – Uma de suas obras mais impactantes é “Vem… pra ser infeliz”. O título ressoa com uma ironia potente, especialmente quando contrastado com a performance em si. Como surgiu essa ideia e o que você espera provocar no público com esse trabalho?
"Vem... pra ser infeliz" é totalmente baseada na figura da Globeleza. Eu cresci vendo aquela mulher negra rebolando nua na TV todo ano. Quando criança, não tinha a mínima noção da problemática que envolvia aquele corpo negro feminino nu na TV. Por ter vindo de uma família evangélica, a única crítica que era formalizada em casa era à nudez do corpo — como se aquilo fosse “indecente”. Mas a questão racial não era mencionada.
Quando fui me entendendo politicamente como um corpo negro — e, mais ainda, sobre a especificidade que recai sobre o corpo negro feminino, o lugar da objetificação e da hiperssexualização — comecei a questionar: a quem se dirige a tal “felicidade” citada na música-tema da vinheta? Passei a me perguntar: “Quem é que está sendo feliz aqui?” Porque, para nós, mulheres negras, sermos vistas e tratadas como objeto de deleite alheio não configura felicidade real. Acredito que esse lugar até possa gerar uma ilusão de felicidade — afinal, a Globo é uma emissora muito influente.
Compreendo que esse posto de Globeleza deva dar muito destaque e parecer uma catapulta de visibilidade para algumas mulheres negras. A gente sabe como é um sufoco conseguir uma oportunidade de ser vista, de conseguir um lugar ao sol — ainda mais se é na área das artes, da atuação, como atriz ou bailarina. Mas… a que custo, sabe?
E aí? Depois de ter seu corpo exposto e explorado para o deleite, principalmente masculino, o que resta? E para nós, mulheres negras anônimas, que temos que ouvir homens que nunca vimos na vida nos chamarem de “Globeleza” nas ruas, achando que isso é um elogio — mas sabendo que o que está por trás é a objetificação e a visão de um corpo visto como “desfrutável”, que não carece de respeito, que é visto para “foder”, como diz a frase do Gilberto Freyre — onde está a felicidade nisso?
Se analisarmos profundamente as consequências dessa estereotipação do corpo negro feminino como objeto de deleite, entenderemos que isso vai muito além da imagem televisiva. Essa imagem sutilmente diz à sociedade que esse corpo não é humano; ele existe para o uso e agrado do outro. E esse pensamento ultrapassa a tela da TV e faz com que, no cotidiano, esses corpos sejam os mais violentados sexualmente, mais assediados, desprezados emocionalmente — provocando uma degradação psicológica e emocional real.
Justamente no ano em que decidi fazer essa performance, foi o primeiro em que começaram a “vestir” a Globeleza, né? Botaram um shortinho, um top… mas depois de duas décadas, a imagem já estava enraizada. E pra você ver que o apelo da personagem era a objetificação — e não a celebração do carnaval — não durou muito tempo vestida, não é mesmo? Pouco depois, a vinheta saiu do ar. Fantasia, dança, celebração… nada cativa o público tanto quanto uma negra pelada.
O recado é: se ela não pode estar nua, não serve aos interesses parasitários da sociedade sobre o nosso corpo. Então pensei: se não tá feliz pra gente, que não seja pros outros também. Vamos todes ficar infelizes, nem que seja por alguns minutos.
Por isso eu reproduzo a imagem da Globeleza, mas trago palavras em vez dos desenhos e pinturas — palavras que falam explicitamente como esse corpo é visto, os termos pejorativos e objetificadores que costumamos ouvir. Trago também a máscara de Flandres, usada em escravizados, para destruir aquela imagem de pseudo-glamour que a TV propagava. Na minha versão da Globeleza, não tem glamour.
3 – Outra obra marcante sua é “Bombril”, em que você confronta de forma explícita o racismo estrutural e os estereótipos associados ao cabelo crespo. Poderia comentar o processo de criação dessa performance e a recepção do público?
Eu, como praticamente toda mulher negra que viveu os anos 90 e início dos anos 2000, sofri muito preconceito em relação ao meu cabelo. Minha mãe até manteve nossos cabelos crespos por uns 5, 6 anos, mas, nessa idade, começamos a alisar — e assim foi até os meus 18, quando decidi parar de alisar.
Minhas amigas da rua também tinham cabelos cacheados, e eu lembro que, quando brincávamos, colocávamos toalha, lençol ou pano de mesa na cabeça. Lembro disso agora e dá vontade de chorar. A gente era muito inocente, mas hoje entendo como não nos amávamos como éramos. Queríamos ser outra coisa — mas, como crianças, não entendíamos isso. Hoje entendo. E percebo como o auto-ódio é entranhado de forma sutil… e destruidora.
Esse sistema me fez crescer me achando feia — até porque ouvi isso algumas vezes de colegas na escola. Quando criei a performance "Bombril", a Rede Globo exibia uma nova versão da novela "Sinhá Moça". Vi uma cena em que os escravizados iam embora após a “abolição”, e tocava uma música melódica como se fosse uma cena linda de liberdade. Vi aquilo e pensei: para fazer escravizados, eles acham um monte de atores pretos, não é? E por que, para outros personagens, não querem encontrar?
Na época, eu já tinha passado pelo meu primeiro emprego com carteira assinada. Um emprego que custei muito para conseguir. Apesar dos cursos e da experiência com estágios, era difícil. Eu sabia que a tal “boa aparência” que as empresas exigiam significava cabelo liso — algo que nos “tolerava” socialmente, mas ainda assim éramos negras.
Na performance, quis falar desse racismo que vivi. De como eu era chamada de feia, de como minha imagem era considerada de “má aparência” para a sociedade. E de como isso dificultou meu acesso a várias oportunidades. Por isso uso roupas que remetem a uma mulher escravizada e lavo panelas e utensílios no chão. É uma alusão ao apelido “Bombril” que dão aos nossos cabelos, mas, sobretudo, uma denúncia sobre o lugar de subalternidade que a sociedade nos empurra.
E mesmo com diploma, se uma empresa não quer uma mulher negra com cabelo crespo, o diploma não garante acesso. O racismo adoece, marca, exclui — e nos empurra para a inexistência.
Quanto aos retornos: são variados. Ao vivo, noto as expressões — bem diferentes entre pessoas negras e brancas. Já vi mulheres negras chorando. Pessoas brancas, em geral, ficam espantadas ou confusas. Na internet, o ódio e o deboche aparecem com frequência. Já disseram que éramos “usuárias de crack”. No início, isso me afetava. Hoje, entendo: não dá para educar quem não quer ser educado.
Mas também recebi retornos sinceros e tocantes. Pessoas que se reconheceram, que repensaram atitudes, que deixaram de usar termos como “Bombril”. Mulheres negras que disseram que meu trabalho falou por elas. Isso me basta. Não vou mudar o mundo — e tudo bem. Isso não deveria ser exigido de uma só pessoa, ainda mais de pessoas negras, que já carregam tanto. Eu faço o que posso, e sei que o trabalho deixa sua marca.
4 – Me conta sobre sua presença fora do Brasil. Você já apresentou seu trabalho em vários países. Como tem sido essa troca com públicos internacionais? Você percebe diferenças na forma como suas performances são recebidas fora daqui?
Sim, totalmente. Até porque, quando saio do Brasil, tento adequar o trabalho ao contexto do local. Já fiz algumas residências artísticas fora do país, com tempo para pesquisa. Investiguei os contextos específicos desses espaços. Mas acredito que, mesmo trazendo questões específicas, o trabalho com o corpo tem uma linguagem universal.
Quando apresentei “Vem... pra ser infeliz” na Espanha, percebi um público muito concentrado, com expressões de perplexidade diante da imagem. No Brasil, por ser o carnaval tão banalizado e a exploração do corpo negro tão normalizada, nem todo mundo se incomoda. Algumas pessoas acham até que estou sambando por diversão.
No último trabalho que apresentei na Espanha, em um ambiente mais elitizado, o incômodo foi visível. O registro fotográfico é sensacional — rostos de choque, nojo, enquanto eu comia várias bananas. Mas, fora do Brasil, nunca vi desprezo extremo ao que não se compreende. Aqui há muitos retornos positivos e tocantes, mas ao mesmo tempo,
também acontece de qualquer coisa fora do comum gerar reações negativas, extremistas, religiosas. “É do demônio”, “balbúrdia”, etc. Isso se intensificou com a ascensão da extrema-direita, desde 2017.
Fora do Brasil, há perplexidade, mas também reflexão. Nunca ouvi os comentários de moralismo extremo e de julgamento que, infelizmente, se tornaram comuns aqui. E isso, para mim, já mostra muito sobre o abismo cultural e político que enfrentamos no nosso país.
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