Fazer uma análise de conjuntura da situação atual da mulher negra é, novamente, constatar que essa importante e significativa parcela da população brasileira é forjada, cotidianamente, para estar na base da pirâmide social. Segundo os dados da 18ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 64% das vítimas de feminicídio são mulheres negras. Quando o assunto é estupro, 88,2% das vitimas são de meninas negras. Isso, sem abordar as diferenças salariais, a violência obstétrica, o alto índice de desemprego, a solidão, a hipersexualização e a exclusão dos espaços públicos de decisão.
Diante do cenário social do parágrafo anterior, é plausível esperar que as mulheres negras sejam resignadas e aceitem toda essa construção que reitera esse lugar de subalternidade, servilismo e violência. Entretanto, nós somos muito mais que esse espaço forjado e cultivado pelos sujeitos de poder e por essa branquitude nada inocente quando se trata de preservar seus privilégios. Há muito tempo, seguimos construindo alternativas de um modo de vida inteligente, feliz, perspicaz, cultural, carnavalesco, afetuoso e de resistência pelo bem viver de todas nós. Foi assim que chegamos vivas até aqui, como bem diz Conceição Evaristo, "eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”.
Sim, nós mulheres negras temos referências grandiosas mesmo diante desse cenário tenebroso construído historicamente pela parcela branca da população brasileira. E, assim como Conceição Evaristo nos lembra da nossa força de seguirmos vivas, Maya Angelou nos ensina a nos levantar toda vez que a violência imposta a nós nos derruba com o seus versos dizendo: “Eu me levanto, eu me levanto, eu me levanto”. Mas, assim como é ousado se levantar e voltar dignamente para vida, é também necessário continuar sentada como Rosa Parks para não deixar o opressor confortável acreditando que a luta está ganha.
As disputas de narrativa que elaboram a memória dos países, construídos com mãos de obras escravocratas propositalmente, nos apagam da história como protagonistas e nos deixam no cantinho, sem falar, como meras coadjuvantes. Fazem isso para que acreditemos que, mulheres como nós são o peso morto na construção desse mundão, e que todas as mazelas sociais que recaem sobre nós seriam por falta de mérito e não em razão da exploração absurda de quem sempre narrou a história. Mas o samba da Mangueira faz uma provocação gostosa de ouvir: “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês". E, se eu optar por falar das tristezas, meu tempo se restringe e perco a oportunidade de citar as referências que alegram a minha vida enquanto mulher preta que sou. Porque só não se orgulha das raízes pretas, da ancestralidade, quem ainda não teve a oportunidade de conhecer histórias de mulheres grandiosas que, mesmo nesse cenário horrendo, fizeram e ainda fazem acontecer.
Só não se orgulha dessa negritude feminina, nesse contexto afrolatino-caribenho, quem desconhece as histórias de vida da Tia Ciata, da Mãe Menininha do Gantois, da Beatriz Nascimento, da Alcione, da Alquatune, da Benedita da Silva, da Helena Teodoro, da Ruth de Souza, da Mercedes Batista, da Carolina Maria de Jesus, da Kamala Harris, da Maria Firmina dos Reis, da Alice Walker, da Assata Shakur, da Clementina de Jesus, da Antonieta de Barros, da Leci Brandão, da Maria Felipa, da Lélia Gonzalez, da Tereza de Benguela, da Conceição Evaristo, da Tereza Cardenas, da Margareth Menezes, da Susana Bacar, da Nilma Lino Gomes, da Sueli Carneiro, da Leda Maria Martins, da Luiza Bairros e de tantas e mais tantas outras.
Nesta quinta-feira (25/7), Dia das Mulheres Negras Latino-americana e Caribenha, é um dia de luta, sim, mas também uma oportunidade de celebrar conscientemente inúmeras protagonistas que construíram esse mundo no braço, na fé, na intelectualidade, na música, no afeto, na luta, na beleza, na política, na ciência, no esporte, no empreendedorismo, no lazer, na gastronomia, na roça, na cidade, nos becos, nas vielas e por todos os lugares. Até porque existem mulheres negras sem Brasil, sem América e sem Caribe, mas não existem esses lugares sem a gente.