Os partidos políticos PSDB, MDB (antigo PMDB), PDT e PT, os quatro maiores partidos do país nos primórdios do processo de redemocratização, há cerca de uma década, vêm deixando de ser forças predominantes, cedendo espaço para partidos considerados de centro-direita e de extrema-direita. E esse cenário vem se reconfigurando e se reforçando a cada nova eleição, não somente em cargos executivos, como também legislativos. E nesse domingo reforçamos essa tendência.
Dos 5.569 municípios que tiveram eleições no domingo último, somente 14 deles terão segundo turno, o que já permite traçar a configuração política pós-eleição. Dentre os 5.555 municípios que elegeram seu novo representante executivo, os cinco partidos com maior representatividade foram PSD (888 prefeitos eleitos), MDB (861), PP (752), União (589) e PL (523).
Os partidos com maior crescimento absoluto foram PSD, com 231 prefeituras a mais em relação a 2020, seguido pelo Republicanos (227 a mais) e PL (179 a mais). Na direção oposta, os maiores encolhimentos eleitorais se deram em três partidos, a constar, PSDB, PRT e PDT, com reduções de 250, 190 e 164 representantes no executivo municipal, respectivamente.
De acordo com o GPS Partidário, índice desenvolvido pelo jornal Folha de S.Paulo para calcular o grau de ideologia dos partidos brasileiros, PSTU, UP, PSOL, PCB e PT são os cinco partidos mais à esquerda na classificação que vai de 1, para os mais à esquerda, a 100, para os partidos mais à direita. Do lado de extrema-direita, encontram-se, em ordem descendente, os partidos Novo, PL, PRTB, PRD e DC. E, dentre aqueles mais ao centro, PSD, MDB e Mobiliza são os grandes destaques.
Em um simples exercício de entender o jogo de forças, se somarmos, dentre os 5.555 municípios que já elegeram seus prefeitos, o total liderado pelos partidos de esquerda, temos a representação de 750 prefeituras, o que equivale a 13% do total dos municípios do país - excluindo-se Brasília e Fernando de Noronha, que não participam desse processo. Os partidos de centro responderam por 51% e os de direita, por 35%.
Ainda segundo a classificação do GPS Partidário, 51% das prefeituras do país serão administradas por políticos de direita e extrema-direita em um processo de crescente fortalecimento das ideologias mais conservadoras que vão, via de regra, na contramão de pautas identitárias, de igualdade de gênero, de questões climáticas e de sustentabilidade, e, em muitos casos, na prevalência do modelo de terceirização de serviços e políticas públicas. É o país seguindo a onda internacional.
Não seria de se estranhar que o país mantivesse sua tendência de crescimento dos partidos com ideologias de direita, embora, muito recentemente, a sociedade não tenha reeleito para presidente sua principal liderança de extrema-direita. A cisão sociopolítica do diálogo e da capacidade de construção democrática ante diferenças ideológicas mostra o país polarizado em um mundo fragmentado, e os tecidos sociais desgastados em meio a discórdias, violências e perdas de projetos coletivos.
Dentre tantas indagações que os comportamentos sociais suscitam, a escolha pelo discurso vingativo, de ódio e de falta de respeito e ética tem roubado a cena. Por pouco, São Paulo, a principal capital do país, não leva para o segundo turno um influencer que conseguiu, no seu estilo sem escrúpulos, terminar sua campanha de forma apoteótica, forjando atestado médico contra outro candidato em descumprimento a regras básicas do processo eleitoral legal de nossa democracia.
Neste segundo semestre, a União Europeia também revelou que os cidadãos de suas sociedades também estão construindo preferências pelos discursos da extrema-direita, que naqueles países carregam, no mínimo, duas bandeiras fortes: o banimento dos migrantes e a negação das pressões climáticas. O lema “farinha pouco, meu angu primeiro” tem tomado conta das mentes revoltosas da população, nutridas pela falta de credibilidade das descumpridas promessas e acordos políticos.
De fato, após duas guerras mundiais, o mundo já vivenciou devastadoras guerras civis que, em sua maioria, matou milhões de pessoas e provocou o êxodo de tantos outros milhões, como a guerra do Vietnã, da Argélia, da Bósnia-Herzegovina, da Guatemala, de El Salvador, do Afeganistão, para citar as mais expressivas ainda no século XX.
No século XXI, após um período de expansão econômica, política (redemocratização na maioria das ditaduras ocidentais) e de expressivos avanços sociais, a onda do retrocesso e da belicosidade volta a tomar a cena e se aproxima, cada vez mais, de sociedades que, há poucas décadas, viviam sob a égide do respeito e da aceitação das diferenças e dos costumes. A inépcia das políticas públicas sociais sucumbiu à ardilosidade e à perspicácia dos frios e sedentos de poder.
É impossível dissociar o crescimento da extrema-direita (i) dos movimentos xenofóbicos, afinal, nos continentes europeu e americano, essa é uma de suas principais bandeiras; e (ii) do fundamentalismo religioso ou falsamente religioso daqueles que manipulam friamente com a fragilidade e precariedade da condição humana para garantir o alcance e a ampliação de seus poderes. É impossível dissociar a revolta e o ódio social do descumprimento dos protocolos políticos.
O mundo descrente está dando espaço à descrença na vida. Áustria e Alemanha, berços do nazismo, sucumbem ao neonazismo, enquanto o povo, vítima do Holocausto, tem, hoje, como líder, o orquestrador da destruição de 80% de Gaza e responsável pela morte de, no mínimo, 41.870 pessoas, das quais 16.756 crianças e 11.346 mulheres. A inversão de valores é a peça fundamental na engrenagem dos líderes que não visam o bem comum. Lembra-nos o conto de Nasrudin (e a Peste).
Não por acaso, foi na região da Turquia que nasceu Nasrudin, que, embora sem muita certeza, estima-se ter ocorrido em meados do século XIII. Seus contos e anedotas foram compilados em uma obra intitulada “Agradáveis histórias de Khodji Nasrudin”, depositada na Biblioteca do Museu do Palácio Topkapi, em Istambul.
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No supracitado conto, “Nasrudin pergunta à Peste para onde ela vai, e ela responde que está a caminho de Bagdá, para matar dez mil pessoas. A Peste volta a encontrar-se com Nasrudin, que fica zangado e diz-lhe que ela mentiu, pois matou cem mil pessoas. A Peste responde que não mentiu, pois matou apenas dez mil pessoas. O resto das pessoas morreu de medo.” Infelizmente, a Peste de Nasrudin está nos consumindo, matando-nos de medo e, em muitos, incitando o ódio e a descrença.