Joe Biden e Kamala Harris em evento na Casa Branca, em 2021; agora, ela poderá substituir o atual presidente na corrida eleitoral contra Donald Trump -  (crédito: Jim WATSON / AFP)

Joe Biden e Kamala Harris em evento na Casa Branca, em 2021; agora, ela poderá substituir o atual presidente na corrida eleitoral contra Donald Trump

crédito: Jim WATSON / AFP

Após o presidente Joe Biden desistir de concorrer à reeleição norte-americana, resolvi reler o capítulo intitulado “As regras não escritas da política norte-americana”, do famoso livro “Como as democracias morrem”. Precisava relembrar como os autores narraram os meandros da política norte-americana desde os fins do século XIX até os anos recentes para crer nos ciclos da história e seguir com esperança na sobrevivência democrática da maior potência mundial.


O mais interessante na descrição dos autores é a demonstração de como as regras da política norte-americana não nasceram fortes. Ao contrário, as regras de tolerância mútua eram embrionárias nos anos de 1780 e 1790, e o sistema de pesos e contrapesos sempre permitiu que o Presidente, os líderes legislativos e a Suprema Corte desfrutassem de poderes que pudessem enfraquecer o sistema político democrático.

 


Dos seis poderes mais importantes, três estão nas mãos do presidente. São eles as ordens executivas, o indulto presidencial e a modificação da composição da Suprema Corte. Trocando em miúdos, caso o presidente considere que sua agenda está sendo obstruída, ele pode emitir ordens executivas, proclamações, diretivas, acordos etc. que tenham força de lei e, assim, governar sem o endosso do Congresso. Sim, a Constituição americana permite que isso ocorra.

 


Os outros três poderes estão nas mãos do Congresso e são a obstrução dos trabalhos legislativos, o poder do Senado de aconselhar e consentir e o impeachment. Assim sendo, ter um Congresso aliado ao Presidente facilita a governança política. E, no último domingo (21/7), os Estados Unidos assistiram a um gesto de um Presidente que buscou driblar o risco de seu partido perder não só as eleições presidenciais, como o poder nas casas legislativas.


Algo notório na política norte-americana e que a fortaleceu ao longo do século XX foi a demonstração de comedimento presidencial do exercício do poder. Ademais, mesmo com normas informais, dois costumes ajudaram o Congresso a funcionar bem: a cortesia e a reciprocidade. Por cortesia, entende-se evitar ataques pessoais ou constrangedores contra colegas senadores. Por reciprocidade, entende-se cometimento do uso do poder.

 


Entretanto, na primeira década do século XXI, mais especificamente em 2008, com a eleição do Presidente Barack Obama, deu-se início a um novo formato de disputa presidencial, rompeu-se a tolerância e o respeito entre os partidos e a propagação de notícias falsas tomou até mesmo os canais de TV, com destaque para o maior canal de TV a cabo dos EUA, a Fox News, sugerindo que o candidato Obama era marxista, antiamericano e secretamente muçulmano.


Deu-se início à intolerância na imprensa nutrida por renomados políticos republicanos. Nessa época, instituíram-se os movimentos Festa do Chá e Birther, este último contestando se o candidato Obama tinha realmente nascido nos EUA e, portanto, se poderia exercer o cargo de Presidente. Em 2011, o maior defensor do Birther, Donald Trump, aproveita da visibilidade conquistada com a polêmica levantada e angaria o respeito dos seguidores do movimento Festa do Chá.

 


Foi dada a largada para a profusão de notícias falsas simultaneamente à queda dos costumes de cortesia e reciprocidade na política americana. E, nessa esteira da lenta destruição das bases democráticas, com predomínio do uso das redes e das mídias para profusão de discursos violentos e notícias falsas, o republicano Donald Trump torna-se presidente dos EUA e arremata outros líderes mundo afora, como no Brasil.


Para engrossar o caldo das tensões no Ocidente, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) acaba de divulgar uma pesquisa intitulada “Truth Quest” (Busca da Verdade, em tradução livre), que visa medir vários aspectos de conteúdos falsos online, dentre eles as percepções e a capacidade de distinção das pessoas sobre os referidos conteúdos.


A pesquisa se concentra na disseminação dos seguintes grupos de questões: pandemia da Covid-19 e vacinas; mudança climática; e tópicos relacionados à identidade - gênero, raça, religião, afiliação política. O Brasil lidera o ranking dos 21 países pesquisados cujos adultos entrevistados têm a pior habilidade para identificar a veracidade de notícias online – situou-se em 21° lugar; os EUA posicionaram-se em 17º lugar.
Para endossar as preocupações quanto à fragilidade democrática, tanto norte-americana quanto brasileira, a pesquisa indicou que as desinformações geradas pela Inteligência Artificial acerca da disseminação de informações falsas e enganosas acometem mais os cidadãos norte-americanos (21º lugar no ranking geral), seguido dos colombianos (20º) e dos brasileiros (19º).


O risco de retorno do ex-presidente Donald Trump traz consigo os temores do crescimento das novas formas de autoritarismo em sociedades ditas democráticas. Mas vivemos, nesse domingo, um sopro de esperança. “Biden fez o que o Trump nunca fará: colocou o interesse nacional acima do seu orgulho e ambição pessoal”, escreveu o editorial do jornal New York Times.


A desistência de Biden exige agilidade e entendimento. O tempo é curto e faz-se necessário a definição de um(a) candidato(a) até a convenção do partido democrata, nos dias 19 e 22 de agosto. É esperado que, antes dessa data, o partido democrata feche consenso em torno de um nome. O apoio do atual presidente Joe Biden à sua vice, Kamala Harris, é uma reviravolta com fortes sinais de mudança de forças e de foco nas estratégias de mobilização popular.


Nesse domingo último, o pulmão da democracia ocidental respirou, mesmo que ainda com ajuda de aparelhos, e sentiu se oxigenar pelo ar que alimenta a liberdade, a luta pelos direitos humanos, a crença nos poderes e na sua atuação em prol do bem-estar comum. Torço pela liberdade e pela democracia. Que a hashtag #wehaveherback em apoio a Kamala se espalhe com a força que carregam as mulheres que reconhecem sua potência e lutam pelos ideais democráticos.